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Ensaio Sobre A Competição

Ensaio sobre a Competição – Capítulo 2

Aquele sonho, ao contrário de todos os outros, não se esfumava após o despertar e o passar dos minutos. Ao contrário de todos os outros, aquele sonho assaltava o meu descanso com recorrência, em vez de me invadir a mente uma única vez e ir-se embora para sempre. Parecia tão real. O que era aquilo de correr com um número na camisola, no meio da estrada, e com tanta gente à minha volta a fazer o mesmo?

Desde que me lembro, as pessoas que vejo na rua, tal como eu, correm nas bermas das estradas, em solitário, não usam camisolas de alças, faça chuva ou faça sol, e não transportam papéis com números. Assim, fica difícil estabelecer um paralelismo entre este sonho e a realidade. Mas entre as duas partes, confesso sentir-me muito mais entusiasmado quando aquele ambiente invade o meu sono. É estranho.

A verdade é que não posso, de todo, ficar surpreendido com esta sensação de estranheza. A corrida sempre foi estranha de algumas perspectivas. Incompreensível até! O maior exemplo que tenho é o facto de correr todos os dias, ainda que por vezes não tenha a mínima vontade de o fazer. Nesses dias difíceis, recordo a falta de explicação para esse meu comportamento. Como se correr fosse um compromisso inadiável do dia, uma tarefa inabalável por qualquer espécie de tempestade. O meu subconsciente diz-me que é para o meu bem, embora não se justifique. Incrédulo, eu aceito aquilo sem questionar. Dê por onde der, a corrida daquele dia tem que existir.

Contudo, de salientar que nem todos os dias são regulados por esta falta de vontade. Pelo contrário! E com isto chego à conclusão que rotular a minha corrida diária com a palavra “rotina” pode ser deveras traiçoeiro. Não será justo colocar-lhe esse termo quando a minha actividade de hoje pode ser tão diferente da de amanhã, embora à primeira vista pareçam gémeas. Aspectos como a qualidade do meu sono, a minha condição física, os problemas e alegrias que me invadem a alma a cada momento, entre outras coisas, fazem com que cada actividade lá fora seja distinta de todas as outras. De igual modo, poderia referir as pessoas, os animais, a natureza e o seu estado de humor, e os objectos com que me cruzo a cada dia e cuja capacidade de influenciar o meu estado de espírito e, consequentemente, a minha actividade, é impossível de calcular. Mas para quê falar sobre isto, quando já está escrito que o leitor vai presenciar uma situação destas?

Continuando, e como estava a dizer, não só por dias difíceis ou de pouca vontade se pautam as minhas corridas. Também existem dias nos quais saboreio perfeitamente aquilo que estou a fazer. Na maior parte das vezes, isso resulta de um estado de tranquilidade, que por essa altura toma conta da alma, aliada à simpatia das condições meteorológicas daquelas horas. Nesses dias, parece que estou a fazer uma caminhada. Um passeio rápido que me permite ver o mundo, ao mesmo tempo que saboreio os mais recentes acontecimentos da minha vida que contribuíram para a paz de espírito que vigora. Mas há ainda uma outra variável fundamental nesta equação! Ao não se sentir cansado, o corpo dá o seu contributo abastado para este “peditório”, e também ele aprecia a viagem.

Por último, em dias de maior stress, excitação, revolta, indignação, ou entusiasmo desmesurado, sinto-me ligado à corrente. Como se as minhas veias se transformassem em fios eléctricos e o meu sangue na electricidade que por lá circula. Sujeito a esta espécie de metamorfose, corro os primeiros metros de rua mais rápido do que o normal. Do que o recomendável! Um comportamento que é apenas o início. Dali para a frente, é sempre a aumentar o ritmo durante um número considerável de quilómetros. Inevitavelmente, vários minutos depois, chego a um ponto onde já é difícil acelerar, ou mesmo suster o ritmo imposto. O sinal de que não tarda nada e volto a ser humano. O corpo queixa-se e a mente grita para parar, até que já não dá para continuar com aquela corrida maluca. Abrando de forma quase abrupta, coloco as mãos nos joelhos, e ouço-me a arfar. Sinto o coração bater mais depressa do que nunca, porém, ironia das ironias, também sinto a tranquilidade a regressar. Foi-se a energia, foi-se a electricidade, mas foi-se também a tormenta. Assim, chego à conclusão que aquela corrida louca não foi mais do que uma táctica suicida para desfazer a minha intranquilidade. Rebentamos os dois, mas eu estou já a renascer e, pelo menos por agora, não se verificam impulsos eléctricos com a intensidade dos que desencadearam tudo isto. Sinto-me de rastos, mas feliz.

Esta reflexão que acabei de ter com o leitor é aquela que me ocupa hoje, e muitos outros dias, enquanto me levanto da cama, tomo o pequeno almoço, e me preparo para sair à rua. Num misto de ansiedade e curiosidade, analiso a minha condição física e mental, numa tentativa de prever o que me espera lá fora quando começar a correr. Irá ser um sacrifício? Um passeio agradável? Ou serei uma marioneta estimulada por impulsos eléctricos fortes? Embora não resista a pensar nisto, a verdade é que só costumo encontrar a resposta no terreno, constatando que estou a tentar controlar o que não pode ser controlado. Mas por falar em terreno, agora que já estou equipado, está na hora disso mesmo. De sair à rua. Para correr!

Continua …

 

Ensaio sobre a Competição – Capítulo 1

Ensaio sobre a Competição – Capítulo 3

 

Nota: Este texto é meramente ficcional. Ainda que alguns aspectos possam ter como base a realidade do autor, o texto não deve ser confundido ou encarado como um reflexo exacto da vida do mesmo.
Ensaio sobre a Competição está escrito em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico.

 

Imagem de Capa: 微博/微信:愚木混株 Instagram:cdd20 do Pixabay

 

Ligado ao desporto desde pequeno, deixei definitivamente o futebol em 2016 para me dedicar afincadamente ao atletismo. Desde aí que muita coisa mudou na minha vida, a qual não imagino sem o desporto.

O Vida de Maratonista nasce então da minha paixão pelo atletismo, com contribuição especial da minha Licenciatura em Engenharia Informática, que me permitiu criar a solo este espaço de aventura e opinião, e torná-lo agradável a quem o visita.

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