Se é sabido que não se deve julgar um livro pela sua capa, o mesmo…
Na Linha da Frente – Atletismo
Sábado. 7 de julho de 2018. 17 horas e 30 minutos. Santa Maria de Lamas. O momento de ser dado o tiro de partida da 4ª edição do Grande Prémio de Atletismo local. A única prova em que sou totalista. Quando surgiu a primeira edição (setembro de 2015), eu tinha sensivelmente 5 meses de atletismo.
De volta ao presente. As caras na linha de partida estão longe de ser estranhas. Na verdade, ali estão muitas amizades que se fizeram na estrada. Depois de fazer a ronda, chego à conclusão que tenho possibilidades de ganhar a prova. Eu acredito que posso ganhar. Estou motivado, em grande forma, e com capacidade de me bater com a concorrência.
A buzina toca e os atletas avançam a grande velocidade. Ao contrário do que é habitual, desta vez até saí mesmo na linha da frente. Mas não é essa linha da frente que dá título a este artigo. Vamos com calma, que 10K é muita coisa.
Depois de uns primeiros minutos em que alguns entusiastas preenchem a frente do pelotão, as coisas começam-se a compor. As peças começam a encaixar nos seus devidos lugares. A única situação anormal, nas minhas expectativas, é um atleta que parece a ir fazer treino intervalado na dianteira. Porém, ele sai de cena por volta do quilómetro 3.
Fica então um trio na frente, do qual eu faço parte. Sei da forte concorrência que tenho à perna. Contudo, sinto-me bastante solto. Os metros passam e, quase sem dar por ela, ainda antes de terminar a última subida da primeira das duas voltas ao circuito, estou a abrir uma brecha para os meus dois companheiros de estrada.
Sim, são mesmo companheiros. Ao mesmo tempo, adversários. Ali, eu quero ser mais forte que eles. Não admito que a amizade interfira no meu lado competitivo. Nem espero isso da parte deles. Todos a dar o máximo! Nada de condescendências! Depois os resultados logo se veem. Mas os dois estatutos sempre ativos. Porque no atletismo é possível. Porque, ao mesmo tempo que se vai a competir, também passamos água uns aos outros e coisas do género, se for necessário. Quem anda na estrada sabe como é.
Vejo o pequeno espaço que se começa a abrir entre mim e eles como uma oportunidade de ir mais além. Estou muito motivado e confiante, fruto dos resultados das semanas anteriores e de todo o apoio que tenho recebido.
Dentro de mim, reconheço o entusiasmo que já me pregou algumas rasteiras no passado. Ele não faz por mal. É por paixão! E por vontade!
Por seu lado, as pernas dizem-me para aproveitar o momento e acelerar um pouco. Em jogo está um pássaro que não sei quando terei nova tentativa para o agarrar. Um pokémon raro! Portanto, que assim seja. Morrer na praia? Estamos em plena época balnear. Deve haver nadadores salvadores a vigiar a costa. Vamos com audácia. Mas controlada!
Audácia controlada … Agora rio-me deste meu pensamento. Tanta ignorância, Renato Sousa! Já imaginava que ia ser diferente, e isso nunca me tirou uma pinta de vontade de pisar esta nova realidade. Mas … bolas, é mesmo isso: uma nova realidade.
Afinal de contas, como podia eu aspirar a correr de forma controlada, quando não havia ninguém à minha frente para controlar? Só se fossem os motards que iam a liderar a corrida e a abrir alas na estrada. Ainda tentei encostar neles algumas vezes. Sinal que estava bem. Mas eles queriam distância de mim e rapidamente voltavam a fugir. Salvo um, que até me ofereceu água por várias vezes.
Ainda em relação a esta nova dimensão, por aqui não devem dar muita atenção aos relógios GPS. Ou é o sinal que é fraco ou então não sei. A verdade é que o meu tornou-se praticamente obsoleto. A partir do momento em que não me diz a distância que tenho para o segundo, e se estou ou não a ganhar vantagem, para que quero ouvir os seus alertas de ritmo ao quilómetro? Diz-me só a distância para a meta. Mas anda rápido!
O tempo e os quilómetros vão passando. Tento espreitar de esgueira para trás, por duas ou três vezes, e não vejo ninguém. Olhares de relance que não conferem muita segurança de tão rápidos que são.
Já com os motards que comandam a prova e com os amigos que estão a assistir à corrida, a situação é diferente. “Força Renato! Estás muito bem, é só controlares!” Diz-me um. Dois. Três. Ok, mas que raio é o controlar nesta nova realidade, caramba?!
Eles não têm culpa. Eu é que tenho, devido ao meu completo estado de desassossego. Quero ganhar. Quero muito ganhar! Quero dar um significado muito maior a todo o trabalho que tenho vindo a desenvolver e uma alegria a todos os familiares e amigos que me estão ali a apoiar e não só ali. A ânsia é tanta que qualquer que possa ser a diferença para o segundo vai-me sempre parecer pequena. É como bater um penalti no futebol. Uma baliza com mais de 7 metros de largura para onde chutar a bola e no entanto ela parece tão pequena.
Mais do que nunca, vou focado. Atento à respiração. Atento à técnica de corrida! Porque tudo tem que ser perfeito. É o poder da motivação! Depois de verificar (pela enésima vez) se está tudo operacional, dou por mim a visualizar na minha mente muitas caras conhecidas e risonhas. Depois a projetar o futuro dos minutos seguintes. Força Campeão! Já falta pouco!
Pelo meio, uma casa com os portões abertos e um cão de pequeno/médio porte sem trela a ladrar à porta. Os cães que são um dos meus maiores receios sempre que saio à estrada para treinar. Faço um desvio ligeiro para o outro lado da estrada, ao mesmo tempo que penso: ai sossegado; nem penses em atirar-te a mim; treino todos os dias, às vezes bi-diário; tens muito tempo; hoje é que não mesmo! Passou o perigo. Era inofensivo. Ufa!
A última subida está quase a terminar. Está a ser dura. Muito dura! Mas será que é só para mim? Claro que não! Para mim e para todos os que vêm atrás. E já que os penaltis estão mesmo na moda, se ao João Moutinho disseram “anda bater, tu bates bem!”, eu também tenho que dizer a mim mesmo “tu sobes bem!”. Porque é verdade! Pelo menos a minha parte!
Curva e descida longa até à meta. Aguenta-te! Controlar, atacar, resistir … foi-se tudo! Relaxa o corpo, recupera a respiração da subida que acabou de terminar e, logo que possível, prego a fundo dentro das energias que te sobram. E para não sentires tanto, desfruta da nova realidade, cuja viagem termina ali à frente e ainda não sabes a data do regresso. Aprecia os curiosos que espreitam nas curvas para descobrirem quem vem lá, ao ritmo das buzinas dos motards. Sou eu caramba! Estou aqui!
Muito perto da meta. Última curva ao fundo. Já se ouvem os “parabéns” e “grande prova” das bocas dos meus amigos. Mas eu, desconfiado como um raio daquilo que não quero perder de maneira nenhuma, volto a olhar de soslaio para trás sem tirar o pé daquilo que o acelerador ainda permite.
Meta à vista! 20 metros. Braço direito levantado para partilhar a vitória com o meu grande amigo Joaquim Gomes, que desse lado está. Ao mesmo o tempo, o esquerdo para saudar a minha família que está precisamente no lado oposto. Agradeço as palmas e os incentivos de todos os presentes, mas apenas interiormente. Vou rápido, o tempo não dá para tudo (ou eu assim pensava …) e quero é pisar a linha de meta.
Ela que está ali a meia dúzia de passos. Rebento com a fita e a mão direita levantada com punho cerrado. Parabéns Renato Sousa. Conseguiste!
Entretanto, recebo uma garrafa de água e preparo-me para entrar no corredor de término da partida. Até que o speaker me chama para prestar declarações. Peço desculpa por já me estar a ir embora. Não foi por mal. Foi falta de hábito. Não estou habituado a estas coisas. Depois de responder às perguntas que me são feitas, de rejeitar uma mini com educação, de tirar uma foto com os amigos que comigo fizeram pódio, e de dizer um pouco do que me vai na alma, sigo então, desta vez de forma definitiva, para o funil de chegada, ao mesmo tempo que vou recebendo os parabéns de vários amigos atletas. OBRIGADO!
Posto isto, esfuma-se o bilhete desta viagem fantástica e única até à data. Vim recambiado até à Terra.
Uma coisa é certa. O portal de entrada desta dimensão já ficou aberto. Quero muito lá voltar! Quero repetir sensações e viver outras novas que desta vez não deu tempo. Sei onde fica, mas também sei que tenho que ir por um caminho diferente. Um ainda mais exigente. Um onde vou encontrar as ferramentas necessárias para abrir as portas de novos sonhos que agora já consigo vislumbrar.
É uma aventura! É uma vida!
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