Se é sabido que não se deve julgar um livro pela sua capa, o mesmo…
Franz Kafka: Diante da Lei? Ou diante do Vício?
Ao olhar para “O Processo”, de Kafka, na minha estante, o conto “Diante da Lei”, que surge já perto do final do livro, assoma rapidamente à minha consciência. Não há outra passagem (ainda que recorde várias sem fazer um grande esforço para isso) que me tenha ficado tão vincada na memória, possivelmente pelo enigma da sua interpretação. Porém, antes de eu próprio tentar fazer a minha, para um determinado cenário, eis um resumo do conto, para que o leitor não se sinta perdido:
Este fala de um homem do campo que está decidido a encontrar-se com a Lei. Contudo, chegado ao local, não atravessa sequer o primeiro portão de entrada (fica a ideia de serem vários) que antecipa tal encontro. Diante desse portão (que está aberto!) marca presença um guarda-portão que lhe diz (e aqui o verbo dizer é importante) que não pode passar. Logo de seguida, o guarda-portão deixa em aberto a possibilidade de, um dia, quem sabe, o homem do campo poder atravessar aquele portão. Porém, de momento, não o pode fazer. O homem obedece mas, em vez de abandonar o local, decide sentar-se ao lado do guarda-portão. Ali instalado, volta e meia, não resiste a espreitar para lá do portão aberto, apesar de nunca o atravessar. Inclusive, o homem do campo tenta subornar o guarda-portão para este o autorizar a passar. Apesar de aceitar os subornos, os resultados são nulos: o guarda-portão não muda o seu discurso. Os anos passam e o homem do campo continua sem desalapar dali, apesar da falta de autorização para passar. Só quando já está muito, muito velho, e pressente a morte, é que se decide a perguntar ao guarda-portão o porquê de nunca mais ninguém, além dele, ter aparecido diante daquele portão, quando toda a gente aspira à Lei. O guarda responde-lhe que aquele portão estava exclusivamente destinado ao homem do campo, agora tão perto de se despedir da vida e, ao dizer estas palavras, fecha o portão e vai-se embora.
Posto isto, puxando a história um pouco ainda mais atrás – a pensar especialmente naqueles que não conhecem esta obra (SPOILER, já de seguida), “O Processo” é sobre um homem que se vê alvo de um processo judicial e que, desde aí, nunca mais se consegue desenredar dele. É uma “dor de cabeça” para a vida, logo, a única maneira de Joseph K. (assim se chama o protagonista) se libertar dela é pela porta que todos acabamos por atravessar, mais cedo ou mais tarde: a da morte.
Ao virar de cada página, o processo judicial absorve, cada vez com mais força, a vida de Joseph K., ao mesmo tempo que destapa, aos olhos do leitor, a insignificância do indivíduo para “obrar” contra um sistema que, de forma consciente ou inconsciente, é capaz de se adaptar às nossas investidas. Fala-se aqui da Justiça. No entanto, a título pessoal e olhando para o sinal dos tempos, isto faz-me lembrar o tema da inteligência artificial e dá-me ainda mais arrepios. Inadvertidamente ou não, para o bem ou para o mal, creio que perdemos o controlo, o que tem repercussões nas nossas vidas (mas também não foi para falar disto que decidi escrever este texto, adiante).
Ora, não tendo eu meios de análise ou capacidade de resposta para explicar sistemas deste tipo, posso pelo menos tentar avaliar isto do ponto de vista do indivíduo. Quando o tentei fazer, depois de algum tempo a ensimesmar no assunto, descortinei, na luta travada por Joseph K. ao longo do livro, a batalha interior que travamos diariamente para gerir e tomar as melhores decisões em relação aos dilemas e assuntos que circulam, em jeito de memorandos, entre os vários compartimentos da nossa cabeça (nesta obra, tais sítios podem ser associados às obscuras secretarias instaladas em sótãos).
Seguindo esta linha de raciocínio, no meio de tantas temáticas possíveis, a que me pareceu encaixar melhor no conto “Diante da Lei” foi a do vício/adicção. Li algures, há tempos (já não me lembro onde), de que todas as pessoas têm vícios. No entanto (e aqui já sou eu a desenvolver), algumas descobrem-nos muito cedo na vida, outras mais tarde, e outras talvez passem uma vida inteira sem darem de frente com (aqueles que seriam) os seus “grandes inimigos”; ou pelo menos a manterem a distância, sabendo que uma primeira experiência os pode fazer cruzar uma porta pela qual não vão mais regressar. Para além de gostar da observação inicial, também é verdade que receio mais por ela, a cada dia que passa. Isto porque com o excesso de informação a que somos expostos, ou temos acesso, ou procuramos por iniciativa própria, é difícil sossegar uma mente que teima em ser irrequieta. Dado este desassossego, alicerçado no vício do estímulo (e este é daqueles que nem nos apercebemos que temos, como se fosse “defeito de fabrico”), parece-me cada vez mais difícil para a generalidade das pessoas passarem uma vida inteira sem darem de frente com os seus maiores vícios.
De volta a Kafka, quando no início de “O Processo”, Joseph K. recebe a desagradável notícia: “o senhor está preso”, mas por quem, ou por que motivo, isso ninguém lhe sabe dizer, esse momento pode ser encarado como aquele em que damos de frente com um vício potencialmente perigoso, seja para a nossa pessoa em concreto, seja para o momento da vida que atravessamos. Porque, a partir desse momento, podemos continuar a fazer a nossa “vida normal”, como aliás é dito ao próprio Joseph K. (“o senhor está simplesmente preso”), que continua assim a trabalhar no banco e a seguir com grande parte das suas rotinas. O problema é que um vício (que quando aparece ainda não tem esse título), como é sabido (ou se é capaz de imaginar), a pouco e pouco, ou até repentinamente, ganha precisamente esse contorno: de vício, de compulsão, começando a afectar os nossos afazeres diários, após assumir o controlo da nossa cabeça. E uma vez descoberto um grande vício, podemos anestesia-lo, podemos evitar contactar com ele, até mesmo prendê-lo na masmorra mais profunda e obscura do nosso ser. Porém, arrisco dizer, não o podemos erradicar, à semelhança do que acontece com as pessoas que conhecemos, muito ao pouco, ao longo da vida. Uma vez estabelecido o contacto, salvo circunstâncias muito especiais, não podemos simplesmente estalar os dedos e dizer que queremos apagar alguém da nossa memória. Pode ficar lá num cantinho, mas não desapareceu.
Então de volta aos vícios, o conto “Diante da Lei”, que resumi em cima, parece-me um belo exemplo para o caso. Pelo menos, foi dessa forma que ressoou na minha cabeça. Passo a explicar. O homem do campo faz-me lembrar aquele momento cuja nossa determinação parece inabalável para erradicar um vício. É essa determinação que leva o homem a querer encontrar-se com a Lei. Ele quer resolver a situação de uma vez por todas, da mesma maneira que Joseph K. queria resolver o seu processo. Este último está preso, mas não sabe porquê, nem por quem; com o homem do campo passa-se algo semelhante: embora ele não se apercebe, é possível determinar por quem é que ele está preso: por si próprio!
Vejamos: segundo o guarda-portão, há vários portões para lá daquele, antes de se poder chegar à Lei, pelo que aquele portão é o primeiro (de muitos obstáculos) a ser superado. Porém, e daí a importância do verbo, o guarda-portão diz ao homem do campo que ele ainda não pode passar aquele portão, embora não adiante mais do que isso. Dizer, não é barrar e, de facto, o portão mantém-se sempre aberto, quando o guarda-portão podia simplesmente fechá-lo para ter a certeza que o homem do campo não se aventurava para lá dele. Não é isso que acontece, embora o homem do campo lhe obedeça, o que pode ser interpretado como nós próprios a encontrarmos justificações para voltarmos ao vício (não avançarmos com a nossa luta). Em suma: aparentemente, queremos encontrar-nos com a Lei para erradicar o vício, mas bem lá no fundo talvez não queiramos realmente (ou não tenhamos forças para tal), caso contrário, o homem do campo entraria pelo portão adentro, mais tarde ou mais cedo, para resolver a sua situação. Isso não só nunca acontece, como também nunca chega a ser comprovado que existem de facto mais portões para lá daquele, podendo nós confiar (ou não) que o que o guarda-portão está a falar verdade. Provavelmente nem existem mais portões. Isso é apenas, mais uma vez, nós a arranjarmos justificações para abdicarmos da luta do vício, a dizer que não vale o esforço. Por exemplo, e pegando em alguém viciado em álcool, corresponderia a não deixar de beber hoje à refeição, porque amanhã há uma festa de aniversário e será “impossível” resistir ao álcool, portanto, para quê cruzar o portão inicial, quando não se vai passar o segundo?
Em paralelo com tudo isto, há a referida tentativa do homem do campo em subornar o guarda-portão que, por sua vez, aceita o suborno, mas diz: “só o aceito para que não penses que descuidaste alguma coisa”, ao mesmo tempo que mantém a sua ordem para o homem do campo não atravessar o portão. Aqui fica a ideia da impossibilidade, da justificação, e da compaixão. De sucumbirmos perante o vício, argumentando que já fizemos tudo o que era possível para o combater, quando na realidade não o fizemos. Ao dizermos isto, estamos a justificar a nós mesmos um novo mergulho na indulgência. Um comportamento semelhante pode ser encontrado na atitude do homem do campo, ao não se ir embora dali quando lhe é negada a passagem. Poderia abandonar e voltar mais tarde, mas não o faz. O homem do campo fica ali sentado para sempre, por livre iniciativa, inclusive espreitando para dentro do portão, de quando em vez. Em resumo, aparenta estar a tentar fazer alguma coisa para resolver o problema, quando na realidade não está, porque há uma parte de si que não quer a abstinência.
Assim se passam os dias, as semanas, os meses, os anos, enfim, uma vida completa, cujo desfecho se torna óbvio a não ser que não se dê de caras com o vício, ou se consiga empurrar este para a masmorra mais profunda e fortalecida que exista dentro de nós. E esse desfecho é precisamente o reservado para o homem do campo que, ao nunca mais abandonar o portão de entrada para o encontro com a Lei, faz lembrar aquelas afirmações, tantas vezes inócuas, do “agora é que vai ser”; “hoje é a última vez”; “a partir de amanhã deixo de gastar dinheiro nisto”; que se tornam tão repetitivas que as teremos de arrastar connosco até ao fim. O gesto do guarda ao fechar o portão, que só acontece no fim de linha do homem do campo, sugere a confirmação dessa nossa incapacidade de exterminar o vício.
Já em relação à pergunta do homem do campo, já perto do fim: “é que toda a gente aspira à Lei. Como se compreende que em todos estes anos, ninguém, a não ser eu, tenha pedido para entrar?”, à qual o guarda-portão responde: “Aqui, ninguém mais podia ser admitido, pois esta entrada estava-te destinada apenas a ti”, o que fica no ar é essa especificidade do vício. Cada um tem o seu, pelo que os portões junto dos quais nos sentamos são todos eles diferentes, bem como, possivelmente, o carácter dos guardas que os vigiam e observam. Novamente, escolho os verbos com cuidado: vigiar e observar. Porque é aqui que entrevejo a única possível solução: ao longo de todo o conto, estamos perante um guarda-portão que se limitou a vigiar e observar o velho, quando podia tê-lo acompanhado até ao encontro com a Lei, ou ao (imaginário?!) portão seguinte. Isso sim, seria um passo assinalável e significativo para o homem do campo, e que também pode ser perfeitamente associado ao tema do vício. Em concreto, nas “companhias” que nos rodeiam. Diante do vício, termos pessoas junto de nós que estão atentas e têm um comportamento proactivo perante essa nossa dificuldade (e se calhar, numa espécie de relação bidireccional, nós perante os vícios que elas enfrentam nas suas própria vidas), é uma maneira não só de nos mantermos mais disciplinados, como de termos uma força extra. Pois sendo essas relações positivas, não queremos defraudar essas pessoas, que no fundo são guardas-portão que nos incentivam a dar (verdadeiros) passos em frente nessa confrontação com o vício, quer se trate de uma dependência grave, quer de algo que seja “apenas” uma pequena compulsão que volta e meia nos afecta.
Concluindo, não tendo o indivíduo grande controlo sobre a Lei, que irá sempre existir, seja ela qual for, nem sobre os vícios, que parecem andar por aí de excelente saúde, talvez o mais importante, nesta jornada, seja precisamente estar atento aos guardas-portão com que nos cruzamos, quando aspiramos à Lei, ou à mínima vontade de enfrentar as nossas tentações. E se os guardas com que nos deparamos não forem do nosso agrado, talvez seja melhor escolhermos outros portões. Desde pequeno que sempre me disseram “cuidado com as más-companhias”. Se o alerta tornava-se por vezes chato e enfadonho, o seu significado subentendido, e possivelmente de maior valor, é o de que, nesse campo, muitas vezes podemos fazer escolhas. Todavia, parece-me evidente, estaremos sempre simplesmente presos.
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
Nota 2: As passagens aqui presentes do conto “Diante da Lei”, fazem parte do livro “O Processo”, de Franz Kafka, edição: Livros do Brasil.
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