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O Meu Treinador - Joana Bértholo | Fundação Francisco Manuel Dos Santos

O meu treinador – Joana Bértholo

Se é sabido que não se deve julgar um livro pela sua capa, o mesmo se pode dizer do seu título, ou até do seu tamanho. Esta pequena obra, da autoria de Joana Bértholo, vai muito além: da pessoa do treinador; da natação, que serve de manto protector às páginas deste seu trabalho; e, de alguma forma, o texto parece ter sido alvo de um extension charm do mundo mágico de Harry Potter, pois as 100 páginas que o constituem, vistas de fora, parecem demasiado curtas para a multiplicidade de assuntos que podem suscitar o interesse, não apenas de atletas competitivos ou de alto rendimento, mas também dos mais casuais, ou de outros curiosos. Este artigo, ainda que incidindo um pouco na minha pessoa e nos assuntos que mais reverberaram em mim, aproveita essa boleia para elencar vários dos tópicos presentes no livro e fazer, pois claro, pequenas deambulações.

Desde logo, devo referir que o título: “O meu treinador” não é muito condizente com a minha situação actual no atletismo, visto que sou eu que estudo e faço os meus próprios planos de treino. No entanto, ao dizer isto, estou também a tornar demasiado redutora a definição de treinador, cujas funções vão muito além da elaboração de treinos para os seus atletas. Aliás, não sendo esta temática que me despertou maior interesse, a verdade é que a análise e explicação desta “figura” por parte da autora, muito cimentada nas suas próprias vivências, é bastante enriquecedora e clarificadora, sobretudo para crianças e adolescentes (e extensível aos próprios pais) que começam muito cedo no desporto – e parte deles no alto rendimento, para perceberem o bom e/ou o mau que treinadores (e restante staff directivo) podem oferecer aos atletas que passam pelas “suas mãos” – e aqui o termo, infelizmente, pode tornar-se mesmo literal, como os media já o têm revelado – e os sinais a que devem estar atentos. Daí o alerta da autora para a necessidade de existirem balizas claras na relação entre uma atleta (jovem) e o seu treinador. A frase:

Nada importava mais para a jovem desportista que fui, do que a sua atenção e aprovação.

diz muito do que pode acontecer numa relação deste tipo, se não houverem limites definidos, não apenas entre atleta e treinador, como também, se houver por trás algum tipo de grupo ou instituição, do que se pode considerar “normal” no seu seio. De igual modo, convém também não esquecer o outro lado da moeda: isto é, que um treinador, tal como por exemplo um professor, pode ter um grande impacto (positivo) no nosso amadurecimento e no auxílio a descobrirmos o que é importante para nós ou que queremos fazer com a nossa vida. Até ser um pilar na vida de atletas, mais novos ou adultos, cujo ambiente familiar possa estar “em cacos”.

Adiante, e ainda num foro mais pessoal, não sendo eu um atleta de alto-rendimento, as partilhas da autora sobre os seus pensamentos e comportamentos da altura em que practicava natação e, mais tarde, triatlo, foram as que agarraram com mais facilidade a minha atenção. Há um relato minimamente alargado de pequenas e grandes (ou graves!) obsessões, resultantes da procura por um melhor desempenho, com que é fácil um atleta, seja ele amador ou profissional, identificar-se. Não precisam de ser as mesmas obsessões, ainda que algumas delas me pareçam transversais, mas acima de tudo a sua presença neste ou naquele comportamento. Umas saudáveis, enquanto outras bem longe disso.

Da identificação com o que está escrito para o regozijo, um dos prazeres desta leitura é encontrar nas palavras de Joana Bértholo aquilo que tantas vezes temos dificuldade em expressar nestas andanças. Eu que o diga, que às vezes escrevo aqui umas coisas sobre as minhas aventuras e vejo-me à nora para poder colocar em palavras aquilo que vivenciei. Há momentos que são realmente difíceis de expressar, e outros, com grande probabilidade, mesmo impossíveis. Passando para aqui alguns exemplos do livro:

A sensação de unidade que se pode experienciar com estranhos junto a quem se termina uma prova;

Esta expressão, com base no que tenho experienciado nestas andanças, parece-me bastante assertiva. Contudo, não se fica por aqui. Na segunda metade do livro, é abordada a questão da diferença de comportamentos e de ambientes. Ou seja, aquelas posturas e atitudes que dentro do desporto, ou de uma modalidade em específico, podem tornar-se rotineiras e consideradas “normais” para, quando saímos para o outro lado das nossas vidas, deixarem de fazer sentido, não diria nas regras da sociedade, mas mesmo nos nossos parâmetros éticos individuais. Afinal de contas, não é qualquer situação que nos permiti experienciar uma sensação de unidade com um estranho, seja dentro ou fora do mundo desportivo.

O treino expõe.

Esta expressão da autora surge num contexto em que realça o facto do treinador perceber o estado de espírito com que ela estava durante o treino. De forma mais completa:

O meu percebia se me tinha corrido mal um teste ou se chegava ao treino de coração partido.

Concordo, ainda que chegue a essa conclusão por outro caminho. Quando não se tem treinador e se treina em solitário, como acontece na grande maioria das vezes no meu caso, o estado de espírito reflecte-se na forma como abordamos o treino, mesmo que não esteja lá o treinador ou outra pessoa a ver. Se estamos mais tristes ou vulneráveis, ou se estamos mais eufóricos ou stressados, isso passa para o exercício. Seja ao baixar os braços se as coisas não estiverem a correr bem e mandar o treino às urtigas; seja começar o treino intervalado com ritmos demasiado rápidos; seja encurtar o aquecimento; ou até mesmo “rolar” mais rápido no que era suposto ser um simples treino de recuperação activa, como se isso fizesse com que o treino terminasse mais cedo, quando se tem um tempo fixo de treino (exemplo: “rolar” 40 minutos serão sempre 40 minutos!).

Em suma, mesmo sem ninguém a ver, se estivermos atentos, temos no exercício um espelho muito pessoal do nosso estado de espírito. E quem diz em treino, diz em competição. A abordagem táctica num dia de prova também me parece muito reveladora dos nossos índices de confiança, força mental, entusiasmo, (in)tranquilidade, dúvidas, entre outros parâmetros. E agora que entrei na parte competitiva, sobre isso, Joana Bértholo escreve o seguinte:

(…) é essencial ter quem olhe por nós, para nós, brade o nosso nome nos quilómetros que custam mais (…)

Isto tanto pode ser o nosso suporte para aguentar o que nos afecta, como o nosso ponto de viragem. E isto é mais fácil de se encontrar num dia de competição, quando já se conhece muita gente do panorama desportivo e competitivo (a “família” vai alargando, a cada participação que fazemos). Porém, em dias de treino, e na ausência de um treinador, temos de encontrar este suporte e ponto de viragem dentro de nós. O que por vezes não acontece no imediato. Todavia, creio que é aqui que melhor funcionam os treinos intensos (como o renascer da fénix). Ser capaz de perseverar e ir até ao fim num treino exigente, independentemente dos ritmos alcançados, pois o importante é estar lá a sensação de esforço e sacrifício, limpa-nos a alma. A isso seguem-se momentos de serenidade, o que será sempre um (novo) ponto de partida mais recomendado para voltar a encarar o que nos apoquenta.

O livro prossegue com uma entrevista a um treinador de triatlo: Lino Barruncho, que é muito interessante para quem quer perceber os meandros do alto rendimento em Portugal. Entre as palavras deste treinador e as da autora, podemos perceber: as dificuldades que enfrentam os atletas (consagrados, amadurecidos, ou jovens promessas), desde as exigências dos treinos e respectiva conciliação dos mesmos com “o outro lado” das suas vidas; os apoios precários a que têm direito e que por vezes nem lhes chegam; o que tem vindo a ser feito para melhorar um pouco este cenário tão cinzento de atletas que, quando chegam a uns Campeonatos Europeus ou a uns Jogos Olímpicos, tanto lhes é exigido, desconhecendo-se o seu contexto.

Posto isto, e depois de uma pequena paragem no “ofício de Sísifo”, a autora e ex-atleta traz ao de cima a dicotomia entre dor e prazer, que no fundo é o espectro em que qualquer atleta oscila, consoante o momento de treino ou prova:

 (…) quando uso palavras como dor ou cansaço não excluo o prazer. Sentir constantemente o corpo é também testemunhar a sua vivacidade.

Não sei se já aqui escrevi em algum texto, mas, em referência à maratona, costumo muito dizer que, durante os 42K: vive-se, morre-se, e volta-se a viver. Como tal, facilmente entendo estas palavras do livro. O exercício, quando em esforço (e não precisa de ser sufocante, basta ser aquele “conforto desconfortável”), faz-nos sentir vivos, por via do corpo que temos. Este “sentirmo-nos vivos é, ao fim e ao cabo, um confronto com a realidade, já que a vida, penso eu, navega neste mesmo espectro: temos dias com mais dor e menos alegria, e outros com mais alegria e menos dor, e no meio de previsões verificadas e contratempos, vamo-nos tentando equilibrar e vivê-la (de facto) o melhor que sabemos, rejeitando qualquer tipo de anestesia. Porque o exercício físico oferece isso mesmo: uma aceitação e convivência com a dor, e não uma tentativa de fuga em relação a ela, que nunca poderá ser consumada. Em tempos que o wokismo se alastra e, consequentemente, começamos a pôr em causa a própria ciência e biologia, a tentar ignorar que temos limites e a fugir do mundo real para habitar num mundo virtual, achando que podemos ser tudo e mais alguma coisa e modificar-nos a qualquer momento, a expressão supracitada da autora, que ilustra como, por via do corpo, nos sentimos realmente vivos e ligados à realidade, tem, a meu ver, valor acrescentado.

Já no último terço do livro, a autora fala um pouco sobre o seu método de trabalho enquanto escritora (com alguns paralelismos com os seus métodos de quando era atleta), o que para mim é outro tema de grande interesse, pois volta e meia vou escrevendo aqui umas coisas. A diferença é que eu não tenho uma rotina fixa para escrever, logo, tanto apareço como desapareço, cedendo às resistências, o que não me acontece com o atletismo, onde o hábito está muito mais vincado. Porém, quando não se faz da escrita profissão, nem do desporto, mas este último já ocupa tanto tempo no dia-a-dia, fica difícil conciliar tudo isto com a parte profissional, pelo que a abordagem da autora:

(…) o meu método de escrita passa por reunir migalhas (…)

parece-me muito útil para casos como o meu, precisando também um pouco de transitar para aqui a fibra mental que coloco ao serviço do atletismo, a fim de criar e consolidar minimamente o hábito de escrever.

Ainda no mesmo capítulo, uma outra citação:

Qualquer coisa pode ser feita como se tratasse de um desporto de alta competição, mas nem tudo deve ser vivido como tal. Demorei a aprender o valor do amadorismo, no melhor sentido da palavra (…)

que não pude deixar de sublinhar. E fi-lo por dois motivos. O primeiro é que, pessoalmente, creio que quando estamos em momentos competitivos mais complicados, o melhor é correr com mindset de amador: quero dizer, o correr pelo amor à modalidade e acima de tudo desfrutar daquilo que estamos a fazer, até ganharmos mais alguma confiança; pode-se argumentar que a alta competição não se pode dar a “este luxo”, mas eu ainda olho para esta estratégia como eficaz naqueles momentos mais duros e em que estamos a passar por uma fase de reabilitação. Independentemente de sermos profissionais ou não. No que toda a índices de confiança, eles oscilam em toda a gente; Segundo, porque dei por mim a pensar no difícil que é desligar o “chip competitivo” noutras tarefas do dia, para lhes incumbir um espírito mais amador. O próprio trabalho/emprego é muitas vezes competição e produção, pelo que juntam-se aqui duas forças muito poderosas (que ocupam uma grande percentagem de horas da agenda diária), das quais não é fácil desenvencilharmo-nos noutros momentos do dia e, verdadeiramente, descansar, respirar e recuperar.

Concluindo, este pequeno livro, como foi explanado ao longo deste texto, vai muito para lá da abordagem à relação entre atleta e treinador. E para quem faz desporto de competição individual e leva as coisas minimamente a sério, irá certamente identificar-se com muitas das palavras da autora. E quem também tiver um gostinho pela escrita, como é o meu caso, junta assim o útil ao agradável, com o extra de encontrar nestas páginas algumas referências a outros livros muito interessantes. Além do “Auto-retrato do escritor enquanto correr de fundo“, de Haruki Murakami, que é um autor bastante conhecido, saliento ainda o “Fluir” (ou “Fluxo”, consoante a tradução e editora) de Mihaly Csikszentmihalyi, que já referenciei indirectamente neste espaço e é um livro que a meu ver vale muito a pena.

 

Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.

Nota 2: As passagens aqui presentes foram retiradas do livro “O meu treinador”, de Joana Bértholo, edição: Fundação Francisco Manuel dos Santos.

 

Ligado ao desporto desde pequeno, deixei definitivamente o futebol em 2016 para me dedicar afincadamente ao atletismo. Desde aí que muita coisa mudou na minha vida, a qual não imagino sem o desporto.

O Vida de Maratonista nasce então da minha paixão pelo atletismo, com contribuição especial da minha Licenciatura em Engenharia Informática, que me permitiu criar a solo este espaço de aventura e opinião, e torná-lo agradável a quem o visita.

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