Alguns leitores, mais antigos e regulares deste espaço, rapidamente perceberão que o texto que se…
Meia Maratona em Viana do Castelo: O (meu) mundo ao contrário
Quando no dia da maratona ficamos vazios e falhamos os nossos objectivos, apesar do fracasso e da libertação inevitável que a linha de meta nos concede, de alguma maneira, o trabalho desenvolvido ao longo da preparação não faz parte desse despojo. Mantém-se connosco e, na verdade, mesmo antes do dia de correr a distância mítica, a dedicação ao processo de preparação, por vezes, já paga alguns dividendos.
Vamos lá ver. Não digo isto apenas por uma questão de consolação ou de ânimo. Acredito nestas palavras. Porém, como uma criança, eu queria mesmo era tirar partido desse trabalho no dia da maratona, não depois. E não sendo as duas coisas exclusivas – o sucesso no grande dia não impede a recompensa deste trabalho mais à frente –, se me visse forçado a fazer uma escolha, possivelmente optaria pela felicidade do dia da maratona. A desilusão, após tantas semanas de treino, tem uma força muito grande, ao ponto deste argumento acabar por se perder em locais inóspitos do Ser. Colocando-me, uma vez mais, no lugar de uma criança, o facto de não saber, em concreto, quando esse trabalho dará os seus frutos, contribui para esse enterro, até que novas aventuras, como a mais recente do meu pecúlio, sejam capazes de o desenterrar.
No mais recente caso pessoal, diga-se em abono da verdade, resgatei esse argumento das minhas profundezas quando andava literalmente à deriva. Porque, contextualizando, desde a participação na Maratona de Bilbau, em outubro do ano passado, o meu cenário foi o seguinte: uma redução intencional na carga de treino, no primeiro mês pós-maratona, para promover a recuperação; um abrandamento na carga de treino, no resto do ano 2022, derivado da falta de motivação, com recurso abusivo ao argumento que este está a ser um Inverno muito rigoroso; a falta de um objectivo claro para o primeiro trimestre de 2023;
Como resultado desta mixórdia, desde finais de novembro que não tenho impresso a qualidade desejada nos treinos mais específicos, nem alcançado a quantidade de quilómetros que considero essencial para fazer uma boa base de trabalho, no reinício de mais um ciclo. Quando, a 10 de dezembro, participei na São Silvestre de Mozelos, apenas por questão de enquadrar os meus objectivos com o da equipa que represento, percebi o quanto a máquina estava perra. Bem conservada, mas claramente com falta de óleo nas engrenagens. Esta presença revelou-se assim importante, tendo em conta as várias situações já reportadas em cima, para eu considerar se realmente queria que as coisas continuassem naquele estado. Não posso dizer que dali saiu uma resolução ou uma convicção inabalável para trabalhar mais nos dias seguintes. Longe disso, até porque ainda estava um pouco na dúvida se não era ainda o esforço da Maratona de Bilbau – que devido a todo o sofrimento, e desgaste acumulado da sua segunda metade, me teria debilitado mais do que o costume – a afirmar-se.
Seja como for, isto serviu para abanar um pouco comigo. Em especial, quando o Inverno dava algumas tréguas, tentei forçar mais um bocadinho. E, o que considero mais importante, a partir dali tentei não fugir à realidade das coisas. Ora, ainda que o trabalho seja contínuo, há sempre um ou dois protagonistas maiores para cada situação, que se tornam a cara do sucesso e recebem os créditos de “toda a equipa”. Neste meu périplo, foram os seguintes:
Primeiro, quando corri 30K na véspera de Natal. E aqui foi importante ter a motivação e a companhia do meu amigo, Hélder Pires, que foi quem programou o treino, pois precisava dele para nova maratona. A mim também me fez muito bem, mas não num contexto competitivo, como já escrevi aqui sobre o assunto.
Segundo, quando aceitei ir à São Silvestre de Pinhel, no último dia do ano de 2022, sabendo que a minha condição física era fraca, para me ver mais uma vez ao espelho e enfrentar a realidade. Confesso que, entre a decisão de ir e o dia da corrida, ainda suspirei por um acontecimento (de mais um temporal?!), que adiasse a ida ou o evento na Guarda. Não aconteceu, e foi mais uma prova complicada, mas cujo efeito de ganhar posições a cada volta naquele carrossel (e foram 4; parecia o cross curto em Castelo de Paiva, mas neste caso em asfalto, paralelo, e altitude) trouxe-me de volta alguma moral, convertida em capacidade de trabalho para os dias seguintes.
Por esta altura, já dá para perceber que esta é uma história de luta pela reabilitação, e não pela melhor forma possível. Queria voltar a correr junto daqueles com quem me batia nos tempos recentes. Uma vez chegado a esse patamar, tentar alavancar isso para uma maior motivação e tempo de treino, e almejar novos recordes pessoais (RPs). Mas uma coisa de cada vez.
Ou melhor, era suposto ser uma coisa de cada vez. Até ali, a única coisa boa deste troço sinuoso da minha jornada pelo atletismo era que, após o enquadramento em Mozelos, qualquer pressão de fazer grandes coisas nas provas subsequentes tinha-se esfumado, o que para uma fase complicada é sempre algo de libertador. Porém, a 7 de janeiro, algo mudou. Quando nessa data terminei os 10K da São Silvestre de Espinho – prova que, não sendo certificada, me parece bem medida – com apenas mais 9 segundos que o meu recorde na distância e, sobretudo, com boas sensações, a história que vinha a construir na minha cabeça sobre o meu estado de forma actual começou a perder alguma da sua lógica. Compreendia o facto de, com alguma facilidade, atingir um desempenho minimamente próximo do meu melhor, pois, é meu entender, que a consistência a longo prazo (neste caso, de anos), sem paragens significativas de treino, permite isso mesmo. Esta componente, por si só, não nos faz quebrar barreiras nunca antes ultrapassadas, mas é uma auto-estrada para nos reposicionarmos rapidamente diante delas. Pessoalmente, foi a isto a que sempre me habituei, por força da regularidade. Tanto as melhorias como os maus registos nunca foram muito díspares dos resultados que obtenho nos meses que antecedem cada evento.
Ora, findadas as São Silvestres, a minha próxima paragem era Viana do Castelo, para a qual fizera inscrição, nas vésperas de Pinhel, precisamente com o intuito de ganhar ritmo e de continuar com o meu check-up pessoal. Só que o resultado em Espinho ameaçou reconfigurar toda esta ideia. O registo cronométrico obtido era motivo suficiente para o fazer. Porém, tentei resistir a esta história e a não criar grandes expectativas. Tentei apenas reforçar o meu enquadramento e arrisquei 30K, onze dias antes da prova, precisamente com o intuito de fechar a porta a essa história de, tão próximo do RP aos 10K em Espinho, poder fazer RP em Viana. Sim, admito, tentei sacudir a pressão sobre mim mesmo, pois sentia não ser o momento para me reencontrar com ela. Precisava desse espaço, depois de em Bilbau ela ter acompanhado todos os meus movimentos.
Foi assim que andei (um pouco) mais tranquilo nos dias que antecederam a viagem até Viana do Castelo. Só logo após o tiro de partida da XXIV Meia Maratona Manuela Machado é que decidi reabrir essa porta, quando me inseri no grupo que achei ser a peça-chave para perceber se tinha condições ou não para um RP. Sabia que Espinho podia ter sido uma ilusão e, ao espreitar para o outro lado da porta, levar uma marretada e ficar apeado. Contudo, o objectivo inicial desta aventura era ganhar ritmo competitivo, portanto, até sentir a necessidade de abrandar, seria sempre um bom treino. Ao longo do percurso, sofri um pouco, passei também bons momentos, mas na maioria do tempo senti-me a resistir (ao contrário da Meia Maratona de Ovar onde, com surpresa, comecei a sofrer relativamente cedo), a prevalecer, pois, não tendo o registo do relógio por uma distracção, tenho a consciência que o meu ritmo foi muito sólido durante toda a prova. Nunca tive quebras, e, quando cruzei a barreira dos 12/13K da prova, momento decisivo em Viana do Castelo, libertei-me dos macaquinhos na cabeça cuja presença já se tornou um hábito naquele troço. Por outras palavras, já tinha em mão a última peça do meu puzzle mental para aquele dia. O resto? É a história que fica: um novo recorde pessoal na distância, e um segundo registo na casa dos 72 minutos à meia maratona.
Chegado a este ponto, estou tão feliz como incrédulo, derivado do resumo que aqui deixei dos meus últimos meses. Como é que sem objectivo ou preparação específica, a treinar “mal” e menos em relação ao expectável para esta fase, com muitas festas e abusos gastronómicos pelo meio, isto acontece? Das duas, uma: ou os rótulos dos factores que determinam o que beneficia e prejudica a minha evolução no atletismo estão trocados, ou muito mal medidos. E qualquer que seja a resposta, só esta constatação deixa a minha cabeça e a minha lógica em alvoroço, porque isto faz-me questionar muita coisa, a todos os níveis! Deixei Viana do Castelo com o meu mundo desportivo virado ao contrário e, honestamente, ainda não sei se o devo endireitar segundo as minhas (velhas) convicções, ou se o deixo ficar assim e ir apalpando as coisas, até perceber o que realmente deve ser reposicionado.
Boas Corridas!
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
Créditos Foto: Américo Dias Fotografia
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