Não consigo precisar há quanto tempo (deve andar perto de dois anos) passei a consultar…
O Labirinto da São Silvestre de Espinho
Depois de ter estado ausente na edição anterior da São Silvestre de Espinho, foi novamente nas ruas deste município que iniciei mais um ano civil competitivo. Ou devo dizer apenas “freguesia”, tendo em conta que é lá que decorre a prova? E se a cidade de Espinho até pode ser grande em termos geográficos (não me parece, mas é uma questão de fazer as contas e comparar com outras), a freguesia é bastante reduzida e tem características bastante peculiares.
De facto, vista de cima, esta pode até ser encarada como uma folha A4, na posição horizontal, de um caderno quadriculado, onde cada um desses polígonos (ou seus semelhantes) representa um dos seus quarteirões. Há um pouco mais do que isso, obviamente, mas esta é a sua forma predominante, pelo que qualquer que seja o percurso de uma prova ali, vai contar sempre com um número assinalável de curvas a 90 graus e retornos a 180. E, tal como acontece com as folhas do caderno, é fácil e rápido chegar de um extremo ao outro do território.
Mas ainda desta perspectiva, do Além, ou do Google Maps, fica a ideia de ali sermos ratos no interior de um labirinto. Não apenas a correr, mas a navegar no labirinto da vida, assunto que de alguma forma já abordei num outro texto. Ora, existe a percepção generalizada que o mundo, por estes dias, avança a uma velocidade vertiginosa, onde já ninguém parece ter mão para o travar, nem pé no pedal para o acompanhar. Porém, este assunto da velocidade actual pode não ser mais do que uma ilusão, no que diz respeito a uma vida repleta de vivências, conquistas, e em direcção àquilo que é realmente importante para nós. Sempre segundo o meu olhar, a configuração desta prova em Espinho acaba por reflectir essa visão da sociedade em geral. Num percurso deste tipo, o tempo passa realmente mais rápido, pois temos de estar sempre focados para fazer aquela curva ali e a outra logo a seguir; e depois, finalmente, uma recta que nos deixa respirar um pouco. No entanto, quando começamos a apreciar esse facto, já estamos novamente à beira de um cruzamento e a ter de tomar mais uma decisão.
Dito de outro modo, estamos constantemente a fazer um esforço para tentar acompanhar muita coisa ao mesmo tempo (é isso que simboliza a viragem para cada quarteirão): seja por necessidade, sentido do dever, vontade própria, ou por outro motivo qualquer. Mas o que na verdade acontece é que não conseguimos embalar em nenhum desses aspectos. Isto é, aprofundá-los o suficiente de forma a descobrir realmente o mais importante para nós. E esta é a grande ironia das coisas, repercutida neste percurso de Espinho. Com tantos cruzamentos, com tantas chamadas de atenção, nem nos apercebemos que a sensação de movimento que temos não é a de alguém que se desloca, com efeito, do ponto A para o ponto B, mas de um hamster que não pára de correr na sua rodinha, sem sair do sítio. Ou seja, continuamos no interior do labirinto …
… e não sei como estão a imaginar a estrutura deste local. Eu cá vejo as suas paredes em vidro. Nem sempre do mesmo tipo, mas um vidro que, quando não reflecte, torna possível ver quem anda do outro lado. E isso também tem o seu significado. Afinal de contas, ver outras pessoas a correr em sentido contrário é motivo para nos deixar apreensivos e ainda com mais dúvidas. Quem não fica, por mais confiança que tenha nas suas decisões e escolhas, quando vê tanta gente a mover-se no sentido oposto?! Estas alterações, constantes e repentinas, a que assistimos na vida dos outros e que também passam para nós, são assim, em múltiplas ocasiões, resultado desse jogo de espelhos que se dá entre nós e a nossa própria vida, entre nós e a vida dos outros. Porque apesar de sermos todos semelhantes, também somos todos diferentes, especialmente quando se trata de pensar pela nossa cabeça e perceber o que é importante para nós. Tanto precisamos de entender as regras e as crenças de quem nos é próximo e da sociedade que nos envolve, como precisamos de desenvolver as que nos são originais e exclusivas. Em suma, é meu entender que o que mais procuramos é um equilíbrio de forças, e de fazer o que é necessário para recuperar esse equilíbrio quando o perdemos.
E é assim que, chegado a este ponto, eis que o labirinto, protagonista desta alegoria em torno do percurso da 8ª São Silvestre de Espinho, se desdobra para mais um significado. Derivado das características já mencionadas, este carrossel de cruzamentos e de escolhas, a cada dezena ou centena de metros, é sinónimo de estarmos despertos e atentos, se não nos queremos esbarrar, ao mesmo tempo que descobrimos novas experiências e percebemos se elas nos interessam e as queremos voltar a repetir. Em caso de rejeição, entender se isso se deve a não termos apreciado a aventura, ou porque entretanto percebemos o que realmente queremos para a nossa vida. Porque parar já não é uma opção! A percepção de movimento abordada em cima retirou-nos essa capacidade. Só paramos (para pensar) quando há um semáforo que nos força a isso, o que nem sempre dá bons resultados. Afinal de contas, não estamos a estacionar com convicção. Apenas porque fomos obrigados a isso.
Resumindo, e por outras palavras, circular pelo labirinto de Espinho é fazer parte da generalização, passar por onde todos passam, até percebermos a especificidade que nos cativa e que está registada no nosso ADN, por assim dizer. Porque este labirinto tem várias saídas, consoante aquilo que queremos. Porém, além da dificuldade em descobrir o que realmente é importante para nós, que nem sempre é tarefa fácil ou uma decisão duradoura, é preciso coragem para atravessar essa saída e enfrentar a longa recta que daí em diante se apresenta, onde nos aguarda a satisfação e o desfrute, mas também o tédio e o aborrecimento com que se pauta esse tipo de trajetos que parecem iguais a cada metro de comprimento e desertos de novidade.
No meu caso, faz todo o sentido participar nesta prova, quando eu próprio, até no que diz respeito ao atletismo, continuo a circular neste labirinto. Por vezes, e sendo Espinho uma zona costeira, quando estou mais perto do lado do mar, as ondas do Atlântico trazem-me à superfície as minhas dúvidas, levando tempo até que a maré volte a sossegar. Já quando me vejo do outro lado do município, e estou mais confiante nas minhas ideias, volta e meia, lá surge um semáforo matreiro, em que aqueles segundos no vermelho são por vezes o suficiente para hesitar nas minhas convicções e decidir dar mais uma volta, à procura de mais uma resposta, de mais uma justificação, em vez de optar pela saída. Não estando numa fase má, tenho a consciência que já estive mais focado e dedicado ao atletismo. Em que conseguia proteger o tempo de treino (e fora dele) com uma convicção que hoje não tenho. Por essa experiência passada, sei onde fica a saída do labirinto para me dedicar mais a esta actividade tão enriquecedora. Todavia, uma sucessão de acontecimentos e escolhas trouxeram-me de volta a ele. Desde então, ainda não reuni a coragem suficiente para sair outra vez e tentar ir mais longe nessa longa avenida. Quando dei por mim, estava de novo cá dentro e, o pior de tudo, é que ainda não descobri o que perdi ou me foi roubado para poder retomar esse caminho.
Boas Corridas! Seja dentro ou fora do labirinto.
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
Créditos Foto: Organização da Prova
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