Se é sabido que não se deve julgar um livro pela sua capa, o mesmo…
O treino intervalado faz de ti uma fénix?!
Está a chegar ao fim um ano ano civil que, por força da pandemia, muito cedo retirou a competição aos practicantes de atletismo. Pelo menos, àqueles que não fazem parte da elite mundial e, em alguns casos, nacional. Como consequência, a desmotivação tomou conta de muitos corredores que, mais cedo ou mais tarde (quando perceberam que a pandemia ia durar), lá acabaram por colocar de lado a práctica do atletismo. Uns trocaram-na pelo sofá, outros mudaram de desporto (ex: para o ciclismo), e, arrisco dizer, entre aqueles que se mantiveram pelo atletismo, muitos reduziram consideravelmente a frequência e a especificidade dos seus treinos. Nesta última situação, o mais prejudicado terá sido o famoso treino intervalado. Afinal de contas, e pergunto isto em linguagem popular desportiva: para quê andar a ganir nos treinos de séries, quando não há competição?
A minha resposta mais natural a esta pergunta é fácil de adivinhar: fazer séries para continuar a stressar o corpo, na esperança de o levar a um nível de condição física nunca antes atingido. No entanto, aqui também é necessária uma boa dose de fé no programa de treino em curso. Por força da ausência do melhor barómetro para avaliar os efeitos do treino intervalado (as provas!), somos obrigados a dar relevância a dados que apenas indiciam o caminho certo.
Porém, e reflectindo com mais profundidade sobre este assunto, encontro uma segunda resposta que, a meu ver, é de maior valor. Sejamos ou não competitivos, para benefício da vida em geral e não apenas da desportiva, parece-me fundamental a inserção do treino intervalado na nossa rotina. No decorrer deste exercício, a transformação não é apenas física, mas também mental, emocional e/ou espiritual. Aqui, não é apenas o corpo que se desmancha por completo com o avançar do treino. Psicologicamente, também aquilo que vinha a ocupar a nossa mente nos últimos dias, horas e minutos, se transforma em pó. Em suma, ali morremos, para logo a seguir renascer, como uma fénix!
Passo a explicar, com os devidos detalhes. Não há frio que sobreviva num corpo quando este executa um treino de séries. De facto, a certa altura, devido ao esforço do exercício, a máquina já arde e dela sai fumo. Quase cospe fogo. Por seu lado, internamente, o sofrimento é cada vez maior. A cada repetição, ganimos cada vez mais e só queremos parar, mas não o fazemos. Porquê? Bem … já viram alguém a parar de correr quando está a arder? Só quando encontra um sítio com água para mergulhar é que o faz. Pois bem, nós, atletas, sabemos onde está a água durante o treino intervalado: no tempo de descanso que separa as várias séries. Só nesses momentos, em que mergulhamos na água, conseguimos apagar o fogo que nós próprios atámos. Mas não é tudo! Uma vez apagado o fogo da série findada, caem as cinzas do que acabou de arder e, com elas, as preocupações, tormentas e emoções, que vinham a ocupar a nossa mente e a tomar conta do nosso estado de espírito. Vai-se tudo, e o processo reinicia: mais um intervalo, novamente o corpo em chamas, mais um mergulho, mais uma parte de nós que, em forma de cinza, fica na pista ou na estrada.
Até que o treino chega ao fim, e um novo processo se inicia. O mais belo de todos! Concluído o treino, muito lentamente, renascemos das cinzas em que nos transformamos, há momentos atrás. Todavia, já não somos a mesma pessoa. Assim como a fénix nasce pequenina e mais bela do que aquela que acabou de arder, nós reaparecemos, não como adultos, mas como crianças. Porque nascemos mais limpos e mais puros, com um olhar diferente para a vida e para os nossos problemas e deambulações. Se é que algumas das coisas que antes víamos como problemas ainda o são. Possivelmente, nesta nova vida, até já deixaram de o ser. A nossa transformação é notória, tanto a um nível interior, como exterior.
Ainda sobre a transformação interior, poderia argumentar-se que o exercício não precisa de ser intenso para nos dar uma outra aura e clarividência após a sua práctica. Concordo com esta afirmação, mas apenas até certo ponto. O exercício moderado é suficiente para nos dar uma maior capacidade de enfrentar os nossos problemas e desafios: de crescer na vida. Contudo, creio que a probabilidade de voltarmos a ficar reféns dos mesmos conflitos ou resistências que nos ocupavam antes do exercício é maior nestes casos. Por outras palavras, os velhos hábitos não foram suficientemente submergidos e, sem grandes demoras, voltam à tona e levam-nos a fazer tudo da mesma maneira. Em contrapartida, quando renascemos como a fénix, é quase um verdadeiro reset. Este efeito, que faz de nós crianças, dura muito mais tempo. Somos um “eu” renovado e, portanto, com maiores possibilidades de fazermos as coisas de maneira diferente, de abandonarmos a nossa zona de conforto, o que se traduz em mais um ajuste (que não volta atrás!) no sentido da vida. Em suma, ligeiras reorientações que, cumulativamente, nos aproximam dos nossos desejos e daquilo que queremos ser enquanto pessoas. Bons treinos!
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
Créditos Imagem de Capa: Mahmur Marganti do Pixabay
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