Se é sabido que não se deve julgar um livro pela sua capa, o mesmo…
Nascidos para Correr, Christopher McDougall – Livro
O famoso livro “Nascidos para Correr”, da autoria de Christopher McDougall, foi recentemente objeto de reflexão aqui no Vida de Maratonista, como alguns de vocês devem estar recordados. Na altura, debrucei-me em exclusivo sobre o capítulo 25 da obra, com a promessa de fazer uma análise mais geral aos seus conteúdos no futuro. Pois bem, hoje cá estou eu para cumprir com a minha palavra.
Inevitavelmente, este artigo irá conter alguns spoilers. No entanto, quem ainda não leu o livro não deve ficar preocupado, já que o dito cujo é muito mais extenso que este simples artigo de análise.
Nascidos para Correr – Sinopse
De nome original “Born to Run“, este livro retrata a aventura inesquecível de Christopher McDougall pelos grandes desfiladeiros (canyons) do México.
Tudo começou através da dor no pé sentida pelo jornalista, que funcionou como o gatilho para uma nova investigação da sua parte. Um estudo que o cruzou com as palavras “Tribo Tarahumara” e, mais tarde, o colocou em contacto direto com elementos dessa tribo e com o misterioso Caballo Blanco.
Mas não só! Num ápice, vindos de todo o lado, juntou-se no México um pequeno grupo de corredores com personalidades e caraterísticas muito próprias, a fim de participarem numa das maiores corridas de sempre. Embora esta tenha passado despercebida aos olhos do mundo, este livro serve como seu testemunho.
Pelo meio, muitas questões, reflexões e relatos do autor relacionados com o Ser Humano e a Corrida. Dois indivíduos que andam de mãos dadas desde o início dos tempos, mas cuja relação tem vindo a perder intensidade, quer por interesses económicos, quer pelas transformações que têm surgido na nossa sociedade e, consequentemente, na nossa mentalidade.
Um início incapaz de agarrar o leitor?!
Confesso que só à terceira vez é que fui capaz de ler este livro até ao fim. Conhecidos meus teciam-lhe rasgados elogios, tendo sido isso o que me levou a comprá-lo. Porém, quando o iniciava, não me sentia motivado o suficiente para nos dois ou três dias seguintes voltar a pegar nele e a partir daí ser sempre a virar papel. Só à terceira é que parti para esta leitura altamente decidido, já que nova desistência implicaria voltar a ler as primeiras páginas outra vez.
Um aspeto importante. Eu li o livro em inglês, o que pode de alguma forma ter influenciado esta falta de motivação no início da história, uma vez que algum vocabulário utilizado nas descrições é bastante técnico. Apesar disso, não creio que esta dificuldade tenha sido a única responsável pelo meu desinteresse. É mesmo preciso ler alguns capítulos até a história ficar verdadeiramente interessante. Por mim falo, só me senti mesmo cativado a partir dos capítulos 12/13, para os quais vou saltar de imediato.
As mulheres e as ultramaratonas
Leadville Trail 100. A corrida que se torna o centro dos acontecimentos por volta do capítulo 12 e que facilmente absorve toda a atenção de um leitor com espírito competitivo. Por esta altura, destaca-se a abordagem à prova de Ann Trason. A ultramaratonista assume o comando da corrida na esperança de que o medo de ser apanhada pelos seus perseguidores a obrigue a ter o melhor desempenho possível.
Para lá de toda a coragem que esta decisão de Ann Trason requer, esta atitude despoleta uma comparação de génio da parte de Christopher McDougall, como é o caso da relação presa-caçador. Como questiona o autor, qual destes dois estará mais decidido a vencer? O caçador pode falhar a caça e voltar no dia seguinte. Já a presa, essa sabe que é o fim da linha se for apanhada.
Posto isto, a pergunta: não é esta uma estratégia arriscada em qualquer tipo de prova? Sem dúvida, agora imaginem numa ultramaratona.
Já pelo papel do doutor e treinador Joe Vigil, o autor presenteia-nos com um dado muito interessante sobre a proximidade de resultados de topo entre homens e mulheres à medida que a distância das provas vai aumentando. Aliás, recentemente circulou a notícia da vitória de Jasmin Paris nas 268 milhas da Montane Spine Race. Se esta vitória é recente, a constatação feita no livro “Nascidos para Correr” já tem uns anitos.
Joe Vigil e Emil Zátopek
Se o capítulo 25 deste livro teve direito a artigo próprio, o número 15, que reúne Joe Vigil e Emil Zátopek, não teve, mas poderá ter influência e servir de base para outros artigos futuros.
Mas então do que fala este número? Da paixão pela corrida que se perdeu ao longo dos tempos e que o dinheiro não consegue comprar. Já não corremos com a mesma chama, o que tem condicionado os nossos resultados comparativamente aos de outros tempos, quando as condições e as ofertas eram reduzidas ou nulas, mas o espírito e a vontade muito maiores.
Quantos de nós chegam à estrada ou à pista para fazerem umas séries, e ainda antes de as começarem já estão a pensar quando é que aquilo acaba? Acontece convosco? Não se preocupem, não estão sós neste mundo.
Ora, é precisamente nesta adversidade que entra em cena o atleta checo para nos servir de inspiração. Ele não ansiava o fim dos treinos. Ele participava em todas as provas que conseguia, como comprova a sua participação nos Jogos Olímpicos de 1952 (Helsínquia). Emil Zátopek corria sem dar espaço para os pensamentos do cansaço e da saturação intervirem. A sua vontade e a paixão pela corrida eram tão grandes que os abafavam por completo.
Contudo, o atleta checo não era apenas um apaixonado pelo atletismo, mas pela vida no seu todo. Uma postura que deixa no ar a grande questão: Foi Zátopek um grande homem porque corria? Ou a corrida é que o transformou num grande homem?
Não é fácil! Quando treinar assume uma componente de trabalho, nós deixamos de correr em prol da nossa vontade para dar lugar a treinos que têm que ser feitos mas que não são do nosso agrado. Resultado? Não saímos à rua sempre com o mesmo entusiasmo ou apenas quando queremos. Sacrifícios feitos a pensar-se em breves momentos de maior felicidade no atletismo. Momentos únicos!
A procura pelos bons resultados exige equilíbrio emocional. Não podemos abusar nos sacrifícios nem prescindir demasiado deles. Se Zátopek alcançou o topo exclusivamente suportado pela paixão pela corrida, então é realmente um feito admirável. Um caso de amor imensurável.
O mistério em torno do correr descalço
O tema principal do livro. Aquilo que defende o livro, quer pela história protagonizada pelas suas principais personagens, quer pela história da marca de sapatilhas “Nike” que nos é narrada ao longo do famoso capítulo 25.
Ao já ter abordado esta temática no outro artigo, não faz sentido voltar aqui a falar dela. O livro defende claramente o método do correr descalço. Apresenta-nos os argumentos que jogam em favor dessa teoria. Pessoalmente, e já depois da leitura do livro, não sou defensor nem crítico da mesma.
Todavia, acredito ter agora uma maior noção de alguns aspetos ligados a esta temática que antes me ultrapassavam por completo. O resultado final deste livro na minha pessoa foi deixar-me a pensar e com vontade de fazer alguns testes para um maior entendimento sobre este aspeto de grande impacto, quer na minha saúde, quer na minha boa postura para a prática do atletismo. Resumindo, alargou-me perspectivas.
O Homem Corredor
Com o capítulo 25 ainda a mexer na nossa cabeça, pouco depois somos confrontados com um outro que apresenta conclusões muito interessantes sobre o homem enquanto corredor. O chamado The Running Man.
Porque o atletismo foi de facto o desporto que acompanhou o Ser Humano desde o Princípio dos tempos. Em determinada página somos apelidados de “máquinas de corrida” que nunca dão o pifo. Com que justificações? Bem, uma delas (altamente comprovada!) é que no atletismo vemos atletas com mais de 60 anos capazes de competirem com alguns na casa dos 20 ou menos.
Como é dito no livro, nós não somos apenas atletas resistentes, somos resistentes durante um longo período das nossas vidas. Quando é dito que nós não paramos de correr porque ficamos velhos, mas que envelhecemos porque paramos de correr, eu cá assino por baixo!
Mas esta é apenas uma amostra de vários estudos abordados no número 28 deste livro de nome original “Born To Run“.
Scott Jurek e a grande corrida que o mundo não viu
Já no último terço do livro, predominam os relatos dos acontecimentos que antecedem e preenchem a tão aguardada ultramaratona que a sinopse e as diversas capas desta obra publicitam. Uma prova que conta com a presença de Scott Jurek.
Um nome que dirá muito aos amantes do trail e aos ultramaratonistas, e que possa ser desconhecido aos praticantes de atletismo nas distâncias inferiores. A quem não o conhece, recomendo que procure saber um pouco mais sobre a sua história de vida, para lá deste livro. Vale a pena! Esta será a personagem mais mediática a marcar presença na grande corrida, o que não significa que possa ser a mais importante.
Nascidos para Correr – Juízo Final
Sem dúvida, um livro que vale o nosso tempo!
Esta é uma obra que abre horizontes aos que procuram saber sempre mais. Neste caso em concreto, no que diz respeito à prática do atletismo, com viagens pela nossa história, testes à nossa saúde, e investigações científicas sobre aspetos técnicos e até mentais.
Por outro lado, embora os primeiros capítulos não sejam propriamente convincentes para os leitores que se decidam a desafiar o valor deste trabalho de Christopher McDougall, tenho a dizer que vale a pena esperar. Aos poucos e poucos, a história vai ganhando balanço em termos de interesse, para só abrandar quando terminar a ultramaratona das 50 milhas pelos desfiladeiros mexicanos.
No final da leitura, mais do que um livro, “Nascidos para Correr” será uma fonte de grande inspiração, mesmo para aqueles que relativizem a sua componente barefoot.
Opá tudo bom, estar motivado é a essência no dias atuais, por isso precisamos de conteúdo que nos ajudem, parabéns pelo blog me ajudou muito.
Concordo Renato Soares, até porque nem todas as fases são boas, pelo que ajuda muito encontrar inspiração e motivação para prosseguir, especialmente nos dias mais difíceis.
Fico feliz em saber que gostaste do espaço 🙂
Abraço!