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34ª Meia Maratona Cidade De Ovar

34ª Meia Maratona de Ovar – Instinto, Relógio e Entusiasmo

Não consigo precisar há quanto tempo (deve andar perto de dois anos) passei a consultar os ritmos de corrida no relógio com muito menos frequência, quer durante os treinos, quer durante as provas. Nestas últimas, sobretudo nas distâncias curtas, já as percorri por diversas vezes sem olhar para o relógio. Na maratona, (ainda?) não arrisco fazê-lo. Na meia-maratona? Fui jogando com o estado de espírito e o que estava em jogo em cada dia de competição. Ultimamente, o relógio tem sido importante para mim mais numa perspectiva de consulta dos dados no pós-exercício e somatório dos quilómetros percorridos a cada semana.

Ora, se não me falha a memória, comecei a adoptar este comportamento pela diversidade de experiências e resultados que fui acumulando em provas, treinos, e possivelmente algumas leituras (não obrigatoriamente sobre atletismo) que me começaram a deixar desconfortável por, ao regular as minhas prestações pelo relógio, me sentir refém do mesmo (confesso: sentir-me refém da tecnologia, seja ela qual for, é algo que me faz muita confusão), não tendo grandes evidências de que essa era a melhor abordagem para um espírito competitivo e obtenção de melhores marcas.

Aliás, nem o facto de quase toda a gente usar relógio durante o exercício (e consultá-lo insistentemente! pois esse é o ponto deste texto) é propriamente uma garantia de que essa é a melhor abordagem. Focando esta divagação exclusivamente na gestão do esforço durante a competição, porque é que o relógio há-de merecer mais a minha confiança do que o meu instinto? (E, à falta de melhor termo, vou usar “instinto” daqui em diante para apelidar a regulação do esforço físico com base nas sensações do corpo, muitas vezes também estas influenciadas pela mente.)

Vejamos. 34ª Meia Maratona “Cidade de Ovar”. Uma prova que me decidi a correr totalmente por instinto. O resultado simplificado desta aventura? Falhei o recorde pessoal na distância, embora creio que por elementos externos e para lá do meu controlo (como o piso molhado e a meteorologia). Dadas as minhas capacidades actuais, o recorde só seria possível se todos os factores (internos e externos a mim) estivessem alinhados. Mas devo salientar que ao longo de toda a prova tinha a sensação que estava realmente a correr para a minha melhor marca na distância. Sentia-me bem, tinha a impressão de seguir a bom ritmo (com postura e boa cadência), e estou convicto de que fiz uma excelente gestão das minhas energias ao longo de todo o percurso. Com base nesta pequena diferença de tempo (entre o real e o imaginado até ver o contador da linha de meta), posso pensar que o meu instinto precisa de mais afinação. No entanto, a distribuição das energias também não me deixa dúvidas que, caso tivesse seguido o relógio e forçado os ritmos necessários para o recorde pessoal, teria “partido o motor” em algum momento precoce da prova, e depois penado até à meta. Em suma, juntando as minhas condições físicas e mentais de 6 de Outubro com todos os factores externos que essa manhã me proporcionou em Ovar, não vejo grandes modificações que pudesse ter feito para ter um rendimento superior. A minha melhor capacidade para a ocasião ficou naquelas estradas e estar convencido disso é tranquilizador.

Posto este resumo da minha mais recente aventura, tenho então de me perguntar: porquê a via do relógio? De tentar manter o mesmo ritmo em cada quilómetro de prova quando os vários segmentos de cada percurso (na estrada) não são uniformes?

Uma hipótese de resposta será porque o relógio nos permite, quando estamos dentro do ritmo, sentir “no controlo”, o que me parece uma marca (logo, um reflexo do nosso comportamento no atletismo) da nossa sociedade. Por boas ou más decisões, por necessidade ou dependência de estímulos a todo o momento, os nossos dias estão sobrecarregados de tarefas e compromissos. Quando assim é, quando há pouco espaço para respirar e para parar e apreciar o que nos rodeia, a percepção que o dia está “controlado” é uma das melhores sensações que se pode ter ao longo das 24 horas, aliviando a ansiedade.

Ainda na mesma toada, não descarto totalmente que o “check” constante ao relógio possa ser uma réplica comportamental do “check” constante ao telemóvel, que muitos de nós fazemos diariamente. É uma hipótese de resposta mais arrojada, mas também digna de menção.

Uma terceira hipótese pode ter que ver com alguma falta de confiança nas nossas capacidades e tomadas de decisão. Como precisar de ter garantias regulares de que o nosso esforço está a valer a pena. Não saber como nos estamos a sair traz de volta a já referida ansiedade.

Uma quarta via, e voltando ao exemplo de eu ter a percepção errada ao longo da prova em Ovar (isto é: de estar dentro do RP), pode-se também argumentar que o nosso instinto não é tão fiável. Eu creio que desta vez me esqueci de descontar, em particular, a variável “piso molhado” da equação. Todavia, parece-me mais importante salientar que o instinto também precisa de treino. Quando se trabalha todos os dias à base do relógio, não se pode esperar que o instinto e as percepções estejam calibradas na perfeição. Acontece que eu entrei no atletismo a tempo de treinar com atletas que usavam o tradicional relógio da Casio sem GPS e me diziam o ritmo a que estavam a correr, o qual eu validava no meu GPS. E a palavra “treinar”, na frase anterior, é significativa, pois há uma diferença grande entre tentarmos ler, por via da intuição, o nosso ritmo num treino de rotina e tentar fazê-lo numa prova. Aqui entra o terceiro elemento do triângulo que dá título a este texto: o entusiasmo.

Depois do ensaio do passado dia 6, estou cada vez mais receptivo à ideia que uma intuição bem treinada pode funcionar muito melhor do que o relógio, SE!!! conseguirmos também treinar e moderar o nosso entusiasmo sempre que necessário. Sem esse cuidado, e apesar de ser útil noutras alturas, o entusiasmo tem um talento especial para enfraquecer ou cortar por completo a ligação que temos com a nossa intuição. Ainda para mais, o momento onde é mais previsível isto acontecer é logo no tiro de partida. Com tanta gente a sair disparada, as lutas pelo posicionamento, os incentivos do público concentrado no local, e o ambiente de festa, como podemos encontrar o sossego necessário para o nosso instinto se fazer ouvir? É complicado, embora, a meu ver, não problemático, se soubermos carregar no travão e estabilizar nos quilómetros imediatamente a seguir ao primeiro. Caso contrário, será uma questão de tempo até percebermos que andamos a “dar ouvidos” a quem não era suposto. E se não formos capazes de diferenciar um do outro (o instinto do entusiasmo) é normal que se crie o medo, a dúvida, e a desconfiança, no que diz respeito a regularmos o nosso esforço por nós próprios. E quando assim é, pois claro, porque não consultar o relógio ininterruptamente para nos manter no controlo?

O problema (do relógio) é que este também não sabe qual o melhor ritmo para nós a cada momento. Usar o relógio implica que nos vamos regular pela média que costumamos obter em provas da mesma distância ou, se formos mais ambiciosos e/ou mais confiantes, pela média que precisamos para um recorde pessoal, que normalmente não difere muito da melhor média que conseguimos previamente. Isto quer dizer que não entram nas contas todos os factores externos (meteorologia, percurso, público, etc), nem os internos atípicos. Isto é: podemos estar num dia excepcionalmente bom ou excepcionalmente mau, a nível físico e mental, tornando-se a estimativa completamente desajustada. Se for um dia mau, ele “apenas” vai passar a ser péssimo. Mas se for um dia soberbo, podemos estar a desperdiçar uma prestação que nos ficaria gravada na memória ad aeternum.

Ainda na senda do relógio, lembrar que este, ao ser uma máquina, tem uma linguagem exclusivamente objectiva, entenda-se: binária. As suas respostas (sinais), ainda que depois passem pelo “tradutor”, lá nas origens são apenas zeros (0) e uns (1). Ironicamente (ou não!), essa objectividade reflecte-se, de uma forma polarizada, na nossa abordagem à prova, quando dependemos do relógio. Vou dar o seguinte exemplo: correr uma prova à média de 3:20/Km. Quer isto dizer, dentro da perspectiva de controlo acima referida, que a minha ideia é correr cada quilómetro de prova a esse ritmo, contando com os bips do relógio a cada 1000 metros para me controlar. O resultado destas consultas regulares (há quem as faça em distâncias ainda mais curtas que as de 1K), é polarizar o nosso estado mental, ou melhor, emocional. Porque se o relógio, a cada quilómetro, marcar o ritmo estipulado, então está tudo óptimo. Já se marcar acima ou abaixo dos 3:20/Km do exemplo, começam logo a tocar as sirenes na nossa cabeça, por um de dois motivos: ou vamos muito lentos e estamos a quebrar ou já não vai dar para o registo cronométrico desejado; ou então estamos a ir demasiado rápido e vamos rebentar mais tarde ou mais cedo; Nota: as observações para os casos fora do ritmo objectivo podem ter um pouco de exagero se forem feitas numa parte muito prematura de uma prova (em que ainda estamos muito frescos). Porém, se já estivermos num nível de esforço moderado, elas parecem-me devidamente ajustadas à situação, pois o corpo, ao já ter algum desgaste acumulado, vai parecer corroborar aquilo que o relógio apresenta.

Por outro lado, o instinto não funciona desta forma. Com ele ao comando, o foco incide em avaliar: a cadência com que vamos; a respiração; a postura de corrida; o combustível que ainda julgamos ter no “tanque”; e comparar o somatório de todos estes elementos com a distância que ainda temos que percorrer até à linha de meta. Deste modo, não existe a polarização da objectividade que um relógio GPS provoca e que não me parece a mais adequada para a corrida: passo o exagero, ou se trata de uma corrida muito curta, ou então não está tudo bem num quilómetro, nem tudo mal no outro. Existe sim, quando o instinto trabalha sossegadamente, a construção de uma narrativa com sentido; cujo enredo avança paulatinamente e, assim sendo, dá-nos tempo para acautelarmos eventuais quebras ou descobrir reservas de energia que julgávamos já não ter. E se esses ajustes já não forem a tempo do desenlace da aventura em andamento, servirão para a seguinte (se calhar não pensamos muito nisso, mas, também nos livros, a vida das personagens continua para lá dos capítulos finais, nem que seja apenas na cabeça do autor(a) e de alguns leitores), juntamente com os dados registados pelo relógio e que podemos consultar no pós-prova.

[Sou um atleta de estrada e parece-me que há cada vez menos atletas a correr na pista em Portugal. Ora, não posso deixar de abrir aqui este parêntesis e perguntar-me se algum decréscimo de resultados não têm também que ver com a decadência da pista. Não pela falta de práctica na pista per se, mas porque na pista o relógio GPS não funciona. É verdade que há um cronómetro, seja no pulso ou instalado junto da linha de meta/ passagens aos 400 metros. Porém, em provas mais longas (5000m, 10000m) torna-se complicado, em especial com o desgaste, andar a fazer contas para os tempos de passagem. Ou seja, mesmo não sendo obrigados a correr sem referências de tempo, consultar o cronómetro e fazer a relação com a estimativa de tempo final é um exercício exigente, o que pode impulsionar mais a corrida por instinto. Talvez isto queira dizer alguma coisa relevante sobre o tema aqui em análise.]

 

Para concluir: não descorando muitas das utilidades que um relógio GPS nos pode oferecer, e ainda que perceba o receio (porque também o tenho!) de correr distâncias mais longas sem referências, já que não as percorremos com regularidade, parece-me que a dependência do relógio (como também acontece com o telemóvel) é excessiva e, portanto, um assunto digno de reflexão (para lá desta que aqui fica) … e de mais experiências! Pelo menos do meu lado. Até porque este texto foi bastante linear e reduzido a três elementos. Mas há outros actores para lá do entusiasmo e do relógio que podem aparecer no caminho do nosso instinto durante o treino ou a competição. Parece que arranjei um tema que me vai entreter nos próximos tempos. A ver vamos.

Nota final: Não deixa de ser irónico que no artigo anterior publicado neste espaço falo de uma prova onde tive uma abordagem oposta à deste texto: o fazer uma prova totalmente à base do relógio, apesar de já nessa altura isso ser uma excepção para mim. Fica a referência ao contraste, para quem tiver curiosidade: “Corrida de São Pedro 2024: Quem queremos ouvir?.

Boas corridas!

 

Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.

 

Ligado ao desporto desde pequeno, deixei definitivamente o futebol em 2016 para me dedicar afincadamente ao atletismo. Desde aí que muita coisa mudou na minha vida, a qual não imagino sem o desporto.

O Vida de Maratonista nasce então da minha paixão pelo atletismo, com contribuição especial da minha Licenciatura em Engenharia Informática, que me permitiu criar a solo este espaço de aventura e opinião, e torná-lo agradável a quem o visita.

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