Não consigo precisar há quanto tempo (deve andar perto de dois anos) passei a consultar…
Meia Maratona de Viana do Castelo – Sensações na Popa e Relógio no Convés
Há já algum tempo que procuro ter uma maior percepção das sensações do corpo ao longo de uma prova, em prol daquilo que o relógio me possa indicar e, consequentemente, afectar o meu estado mental. De facto, esta permuta faz parte dos objectivos que estabeleci para 2020. Aos poucos e poucos, quer nos treinos, quer nas provas, tenho vindo a colocá-la em práctica e com isso adquirido experiências importantes.
Contudo, se a minha ideia é dar o controlo quase total às sensações, por esta altura o melhor que consigo fazer em provas longas é ir dividindo as atenções. Já conto algumas aventuras de 10K onde quase não olhei para o relógio. Porém, é totalmente diferente correr uma meia-maratona neste estado, principalmente quando se acalenta a esperança de um recorde pessoal. A tentação é muito maior.
XXII Meia Maratona de Viana do Castelo – Manuela Machado
Ora, no passado domingo, na XXII Meia Maratona de Viana do Castelo (Manuela Machado), consultei o relógio à passagem de cada quilómetro. Todavia, dei quase sempre a última palavra às sensações, o que se traduziu num excelente resultado. Claro está que isto também só foi possível porque me apresentei fresco e em boa forma. No entanto, para quem procura descartar quase por completo o relógio a longo prazo, talvez daqui possa retirar a ilação que no meio (entre relógio e sensações) é que está a virtude.
Os primeiros quilómetros
Tudo começou logo após o tiro de partida. Independentemente das distâncias, raras são as vezes em que não sinto nas pernas os ritmos velozes iniciais. Seja porque tenho de andar à procura de um bom posicionamento, ou por não querer perder totalmente de vista os meus potenciais rivais, mesmo que estes tenham cedido ao entusiasmo e partido muito rápido.
Porém, para meu agrado, desta vez tive uns primeiros minutos em que não me senti a forçar muito o andamento para estabilizar a máquina. E não ia lento! Poderia trazer o aquecimento pré-prova para esta equação. Contudo, também esse foi dentro do normal: não aqueci intensivamente, mas também estive longe de me desleixar.
Ultrapassados os primeiros 2 quilómetros, os grupos estão formados e os ritmos começam a assentar. Tudo fica mais tranquilo e analiso pela primeira vez a situação. O relógio aponta 3:27/km de ritmo médio. O meu objetivo era baixar dos 74 minutos de prova e para isso bastava-me os 3:30/km. A diferença não era muito grande, mas outros factores tinham de ser tidos em conta.
Primeiro, a questão do percurso, que é tendencialmente mais duro na primeira parte e no início da segunda metade. A última grande dificuldade do trajecto está instalada entre os quilómetros 12 e 13. Quem passar este troço – onde eu fiquei apeado no último ano – ainda com forças, depois tem tendência a melhorar a média da prova, pois seguem-se muitos metros a descer antes de se voltar ao plano.
Em segundo lugar, a questão do vento. No sentido da primeira metade da prova, este indivíduo encarava-nos quase sempre de frente ou numa espécie de diagonal. Sem dúvida um aliado precioso após o retorno, mas para isso era preciso chegar lá em boas condições.
O primeiro voto de confiança nas sensações
Enquanto ia fazendo este tipo de análises, os metros iam passando. Mas segundo a estratégia delineada, estava para lá do recomendado e podia pagar isso muito caro. A possibilidade de ficar novamente apeado após o retorno invadia constantemente a minha mente. Mais dois ou três quilómetros passaram e a média mantinha-se. É certo que eu estava num bom grupo e ia protegido dentro do possível, mas estava a arriscar.
Confesso que por esta altura, e embora o meu amigo Hélder Pires me incentivasse a não descolar, se alguém tivesse ficado para trás naquele grupo para correr a um ritmo ligeiramente mais baixo, eu teria pensado seriamente em fazer o mesmo para assegurar energias e tentar marcar a diferença depois do retorno.
No entanto, só depois dos 7 quilómetros é que alguns elementos começaram a ficar. Mas aí eu já tinha mudado de ideias. Caramba, as sensações eram boas. Tinha uma fase ou outra menos confortável, também reflexo da zona mais ondulada que atravessávamos, mas no geral sentia-me bem.
Mais a mais, de tão bem gravada que me ficou a última aventura em Viana do Castelo, eu quase podia fazer comparações com as sensações que tivera um ano antes, em cada troço do percurso, como se tivesse vivido essa experiência na véspera da prova. Na XXI Meia Maratona de Viana do Castelo nunca me sentira confortável na primeira metade, ao contrário do que agora se verificava. Começava a ter razões sólidas para confiar no que estava a sentir, reforçadas por alguns bons resultados de um passado recente com base em estratégias semelhantes.
O momento da verdade
Junto do placard que anunciava os 10 km estava o retorno e, portanto, o momento da verdade aproximava-se. Nos três quilómetros seguintes iria descobrir se as sensações que estava a sentir eram genuínas. Todavia, ao percorrê-los, esta pergunta caiu quase no esquecimento. Porquê? Porque tinha esperado um ano para limpar da minha cabeça a fraca prestação que ali tivera. Queria dar uma resposta cabal a mim mesmo e foi isso que me agarrou toda a atenção. Tirei partido das boas condições físicas em que estava, do vento que naquela altura já começava a empurrar, e do apoio recebido, pois vinham atletas do outro lado em direcção ao retorno que me incentivavam. Consegui!
Outra vez. Consegui! Ao dar uma resposta inequívoca de capacidade, metade deste fardo – que me azucrinou a cabeça durante um ano e se intensificou com o aproximar desta prova – ficou ali, no topo daquele quilómetro 13. O que restava dele era para eu transportar até à linha de meta.
Quilómetro 13 – O ponto chave
De facto, parece-me correcto dizer que o troço que antecede a chegada à placa dos 13 quilómetros será o ponto chave para os vários grupos de atletas. As subidas que antecedem esta marca do percurso moem bastante, provocando a destruição desses grupos. O meu não foi excepção. A partir dali fiquei em solitário, com alguns elementos a seguirem na frente e outros a ficarem para trás. Para mim, ficar sozinho não foi motivo de preocupação. Estava feliz pela barreira psicológica que acabava de saltar.
Tentações e sensações
Com a grande dificuldade ultrapassada e o meu ritmo médio de prova a baixar apenas um pouco, a grande onda de medo e preocupação desvanecia-se e dava lugar à esperança e ao entusiasmo de alcançar um registo na casa da 1 hora e 12 minutos. Incrível como as coisas podem mudar de um momento para o outro…
Os quilómetros 14 e 15 foram muito rápidos (como a consulta do relógio me indicou), comprovando a existência de energias e colocando o ritmo médio perto desse objectivo mais ambicioso. Naquele momento, com cerca de dois terços da prova percorridos, ainda me sentia com capacidade de forçar o andamento, chegar mais à frente, e assim evitar fazer o resto da prova em solitário.
No entanto, e chame-se experiência de corrida, intuição, ou outra coisa qualquer, as sensações deixavam-me dúvidas se o combustível iria durar até à meta. Optei por confiar nelas e mantive o ritmo, mostrando também mais cautela em preservar um recorde pessoal do que atacar o patamar seguinte e partir o motor. As circunstâncias de corrida e o meu esforço tinham-me colocado numa situação muito vantajosa até ali. Não a podia hipotecar sem ter motivos muito fortes para isso.
Decisão acertada
Hoje, vivo com a sensação de felicidade que ajuizei bem a minha condição. Os quilómetros seguintes apontaram registos muito interessantes (acima dos 3:27/km até, o necessário para um registo acima dos 73 minutos), mas o desgaste, um pouco para lá do normal, foi-se tornando evidente com o aproximar da meta.
O penúltimo quilómetro foi muito duro, e o último então, que voltou a colocar os atletas a remar contra o vento, foi penoso. Mesmo assim, ainda cheguei à última curva com a esperança de finalizar dentro da 1 hora e 12 minutos. Quando acabei de curvar e olhei para o contador na meta, essa possibilidade estava a acabar de desaparecer.
Tenho a noção que cheguei no meu limite, olhando à forma como me senti nos minutos antes e após cortar a linha de meta. E antes da felicidade tomar conta de mim, foi a leveza que assumiu o comando das operações, pois ali deixei o resto do fardo que carreguei durante tanto tempo.
Um texto, um troço do percurso
Este texto centra-se assim na superação de uma simples parte do percurso desta prova. Uma ascensão que é dura, mas não a mais difícil que já ultrapassei deste que pratico atletismo.
Ora, eu não estou nada habituado a ter de desligar o motor numa prova e seguir dessa forma até à meta. Como tal, a maneira como esta rampa foi capaz de me vergar no ano transacto marcou-me bastante e ganhou grandes contornos dentro da minha cabeça. Ironicamente, nem terá sido ela a maior culpada disso, mas sim o resultado das decisões atléticas tomadas nos dias anteriores a essa edição de 2019 da Meia Maratona de Viana do Castelo (Manuela Machado).
Em que é que pensas quando corres?
Por último, de notar que este relato pode ser encarado como uma resposta indirecta à pergunta que amigos e familiares não praticantes de atletismo tantas vezes nos fazem a nós, atletas: “em que é que tu pensas quando corres?”.
Para os dias competitivos, aqui está a resposta. Além das preocupações que por vezes nos assolam em algumas aventuras, a estratégia definida antes da prova nem sempre é cumprida à regra. Seja por responsabilidade nossa ou pelas circunstâncias de corrida, temos de estar constantemente a analisar a nossa condição física, o que se está a passar à nossa volta, e a tomar milhares de micro-decisões, com vista ao melhor desempenho possível. Para lá da força psicológica que procuramos ter, muito trabalho é desenvolvido no escritório ao lado (o do processamento mental!) ao longo de 21 mil e 97 metros, ou de outras distâncias consideráveis.
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
Créditos Fotos: José Cunha (Flaxjac), Matias Novo, Objectiva em Movimento, Amaro Felgueiras
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