Alguns leitores, mais antigos e regulares deste espaço, rapidamente perceberão que o texto que se…
Corrida Marginal Miramar 2022 – Um Retrato Familiar
Contexto. Aquilo que tantas vezes nos falta para avaliar palavras e acções com o devido juízo. A fotografia deste artigo, memória visual da Corrida Marginal Miramar 2022, não foge a esse escrutínio. Há anos atrás, era algo normal. Há meses, era um crime de saúde pública. Hoje em dia, enquanto a COVID vai e não vai, reencontra a rotina do antigamente. No entanto, além de agora olhar para esta oportunidade de tirar fotos em grupo como um privilégio, há muito mais que sobressai deste retrato, no confronto com a minha atenção. Vou desenvolver.
Inadvertidamente, quer me parecer que os confinamentos vieram apenas exacerbar o carácter individualista e solitário que já pautava a sociedade moderna, em especial as gerações mais novas, nos últimos anos. E aqui não me refiro ao encontro propriamente dito entre pessoas (seja físico, ou até mesmo virtual), mas à ausência que se verifica dentro dessa presença. Isto é, à falta da compreensão e incapacidade de ouvir verdadeiramente aqueles com quem estamos a falar (de evitar que eles estejam a falar “para o boneco”). Seja porque estamos a pensar noutras coisas enquanto concordamos mecanicamente com o que é dito, seja porque já estamos a preparar respostas à medida da nossa bitola e ainda os desabafos e os pontos de vista do outro lado não terminaram. Vistas as coisas de outra perspectiva, parece que apenas somos capazes de nos compreender a nós mesmos e só é aceitável que os outros pensem e ajam da mesma forma que nós. Não há espaço para a diferença, entenda-se, para a diversidade.
De volta à fotografia de família, em termos pessoais, olhar para estas caras é, de alguma maneira, lembrar-me de tirar essas palas dos olhos que apenas permitem que olhe para mim próprio (e, por vezes, nem isso). É reconhecer as diferentes personalidades e resgatá-las da minha base de conhecimento, aclarando essa ideia de um ser-humano vasto e complexo que está muito para além de mim. É retirar-me o tapete. O centro do mundo. Por via de um simples retrato, volto a perceber que a vida está toda para além de mim.
Por outras palavras, e em consequência da tomada de consciência da situação anterior, recupera-se também a alegria de se fazer parte de uma comunidade. De uma família. De facto, não é a mesma coisa chegar a um evento destes equipado “à desportista” ou igual a outras pessoas que representam o mesmo clube que nós. Há uma ligação e sensação de pertença a algo que, por si só, cria laços entre as pessoas. Um elo que nos deixa mais confortáveis e felizes. No entanto, quando, em algum evento, representamos essa comunidade em solitário, também sentimos esse isolamento de uma forma mais exacerbada. Felizmente, são situações que podem ser mitigadas por via dos encontros com conhecidos de outras equipas, dado que a rivalidade só se acende quando é dado o tiro de partida.
Por alguma razão não identificada, os cenários anteriores fazem-me lembrar a dicotomia família-amigos. Uma destas nós temos a possibilidade de escolher na nossa vida. A outra, não. O que é curioso é que alguns vivem em conflito a vida toda com a parte que não escolheram e afagam as mágoas na que escolheram. Mas também há aqueles que afagam na que não escolheram e, por estranho que pareça, passam os anos aos desacatos com os que escolheram (mal), como se aquilo fosse apenas ficção.
Para concluir, um último olhar para esta fotografia familiar. Se cada cara esconde uma personalidade diferente, a camisola uniforme procura criar uma barreira que impeça a avaliação do nosso carácter com base na parte competitiva. O que não é propriamente de menosprezar, tendo em conta a nossa tendência para julgar a personalidade e o profissionalismo de uma pessoa numa determinada situação, com base naquilo que ela é capaz de fazer noutra totalmente diferente. Daniel Kahneman chamou a isto “efeito de aura”, que está presente em muitos momentos do nosso quotidiano. A verdade é que nós não somos melhores ou piores pessoas com base nos nossos resultados enquanto atletas. Somos exacatamente os mesmos, antes, durante, e depois dos desafios, e não devemos deixar que os números influenciem essa nossa “avaliação” das pessoas. Esta fotografia, por via da camisola que todos partilham, e em contraste com as caras nas quais o nosso olhar é capaz de descortinar personalidades diversas, transmite essa ideia. Pelo menos, é assim que eu interpreto este retrato, quando olho para ele com mais profundidade.
Boas corridas!
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
Créditos Foto: Américo Valente
Este artigo tem 0 comentários