Não consigo precisar há quanto tempo (deve andar perto de dois anos) passei a consultar…
A Barreira dos 30 Quilómetros
Na mais recente véspera de Natal, voltei a fazer uma corrida de 30 quilómetros. Com base nas sensações dos dias anteriores, e na motivação corrente, este era um treino para o qual partia apreensivo. Porém, o exercício acabou por correr bem. Muito melhor que o esperado, num ritmo tranquilo e vivo em simultâneo. Como eu gosto!
Pois bem, como consequência desta surpresa agradável, dei por mim a pensar sobre o assunto que agora desagua neste texto. Isto é, na barreira dos 30K enquanto elemento fundamental para romper com a minha zona de conforto e me permitir continuar a crescer. Dito de outro modo, por esta altura, os 30 quilómetros são, aos meus olhos, a fronteira que delimita a minha rotina automatizada e comodista da minha zona de desconforto ou de superação (apenas no que ao atletismo diz respeito?! Fica a dúvida a pairar …). E enquanto maratonista, pode parecer estranho falar assim. Não seriam os 42K da maratona um número mais ajustado para o meu panorama actual? Negativo.
Passo a explicar, começando por referir que este artigo se insere num contexto de rotina e de trabalho, e não no envolvimento que só o dia (muito especial) da maratona pode oferecer. No meu caso, apesar de já contabilizar algumas participações na maratona, esta continua a ser um sonho tornado realidade, a cada nova repetição. Ou seja, continua a ser um dia muito raro no meu calendário anual e, portanto, não é algo que faça parte do meu quotidiano. E para concretizar esse dia, há sempre um longo caminho de preparação pela frente, com vista a desenvolver a capacidade de sonhar esse sonho. E é aqui que entram os 30K. Porque são eles que fazem a ponte (abrem a fronteira) entre aquilo que já sou capaz de fazer de uma forma rotineira e automática com aquilo que já obtive em raríssimas ocasiões, ou sonhei alcançar.
Resumindo, por estes dias, o número 30 é um elemento fundamental na minha agenda. Mesmo quando outras metas assumem, temporariamente, o lugar da maratona no trono de “objectivo maior”. Ele é o mágico que revela a minha vontade intrínseca e capacidade de trabalho pois, ao tratar-se de um treino (“de mais um dia no escritório”), estou ainda isolados das motivações externas oferecidas pela maratona enquanto evento. Por outras palavras, e mesmo que possa ter ajuda de “colegas de trabalho”, estou ainda entregue a mim mesmo, ao “aborrecimento” do quotidiano, e à minha capacidade e força interior. Nada mais! E no caso da distância mítica, capacidade é mesmo o termo mais adequado, no sentido em que os 30 quilómetros me permitem perceber se estou ou não dentro das condições necessárias para o sonho almejado, ou se ainda tenho de recuar mais um pouco antes de atacar o “grande voo” que idealizei. O sonho que quero voltar a viver!
Chegado a este ponto, reforço que esta é uma abordagem muito pessoal e momentânea. Os 30K pertencem ao meu caso específico, mas para o leitor pode ser um outro número ou um outro tipo de desafio. Nas circunstâncias actuais, esta distância (em termos de treino) mete-me muito respeito e causa-me apreensão. Um pouco menos por treino e o efeito perde-se. A “geração” dos 20K aparece com relativa frequência no meu calendário, pelo que o impacto desta quilometragem, ao não atingir a fronteira estabelecida, ao não romper com a “zona de conforto” mais próxima do desconforto, não tem o efeito psicológico desejado para me impulsionar para o futuro ou para me reenquadrar com as minhas metas. É um pouco como o processo psicológico dos preços que surgem, por exemplo, a 2.99€ em vez de 3.00€ exactos, só que no sentido inverso. Aqui, o resultado psicológico dos 29K e dos 30K é muito diferente, ainda que seja só 1K a separá-los (por menos, anda-se às voltinhas ao quarteirão à beira de casa). De igual modo, 31K ou 32K já parece acrescentar pouco aos 30K em si mesmos.
Em suma, voltar a correr 30K foi voltar a sentir-me desconfortável dentro do confortável, a tirar prazer do processo de treino apesar das dificuldades esperadas ou, colocando este cenário no termo cunhado por Mihaly Csikszentmihalyi, a estar “em fluxo”. E em condições normais, enquanto continuar com este regime entre as provas de meio fundo e fundo, os 30K, juntamente com mais alguns treinos específicos, parecem-me ser a linha que me coloca entre a realidade e a criatividade; entre a realidade e o sonho. E da mesma forma que por vezes precisamos de sair da redoma que nos aprisiona em exclusivo com os problemas e dificuldades da vida, a fim de as relativizar ou encarar de outra perspectiva, esta visita mais regular à fronteira da realidade e da imaginação pode reavivar aquilo que temos de bom e nos confere significado, mas que tantas vezes deixamos adormecer, isto é, passamos a dormir sem o acto de sonhar. E ele faz-nos muita falta! Confrontar aquilo que somos com aquilo que podíamos ser pode ser a diferença entre uma vida impulsionada pelas rotinas formadas ao longo dos anos (pelo comodismo), e uma outra comandada pelas nossas ideias e vontades, que impulsione ajustes e correcções nos hábitos já existentes. E assim se progride, passo a passo. Em breve, espero voltar a correr 30K.
Feliz 2023! Bons treinos!
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
Créditos Foto: 4º Grande Prémio Atletismo Santa Maria de Lamas (Organização)
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