Se é sabido que não se deve julgar um livro pela sua capa, o mesmo…
Livros sobre Desporto que li em 2020 – Parte 2
Em Junho passado, prometi um segundo artigo sobre livros de desporto lidos em 2020, ainda antes do virar do ano. Um artigo que tinha programado apenas para dezembro. No entanto, visto que estamos em novo estado de emergência devido á pandemia do COVID-19, e como já conto com mais 6 livros no repertório para aqui falar, decidi antecipar o dito cujo para esta altura. Se, por questões de saúde pública, os convívios humanos estão temporariamente desaconselhados, uma das melhores alternativas é, e será sempre, arrisco dizer, a dos livros.
Como se tornará evidente já de seguida, o termo “Desporto”, utilizado no título do artigo, é bastante evasivo. Aqui são apresentados livros que incidem na ciência desportiva, no corpo humano, na biografia de ex-atletas, entre outros assuntos. Uma selecção que não foi propositada, apenas um reflexo da minha curiosidade por todas estas temáticas, sempre com a perspectiva em mente de poder tirar algo delas que me possa tornar um melhor atleta.
A Natural Method of Physical Training; Making Muscle and Reducing Flesh Without Dieting or Apparatus
Edwin Checkley
Um livro que despertou a minha atenção quando mencionado em “A Marca dos Heróis”, de Christopher McDougall. O livro é curto e a qualidade do texto não é a melhor. Edwin Checkley defendia o movimento natural e a vida activa para tornar o corpo humano forte e ágil a todos os níveis. Checkley criticava fortemente os ginásios e metodologias semelhantes que visavam treinar o corpo de uma forma “artificial”, com o simples propósito de o tornar mais musculoso e saliente. O britânico argumentava que isso não era sinónimo de capacidade atlética, caracterizando a massa muscular exagerada como inútil numa situação urgente e de sobrevivência.
Como McDougall diz no seu livro, esta obra de Checkley, escrita por volta do ano 1890, é mais um manifesto do que outra coisa. Pessoalmente, despertou-me o interesse por fazer o contraste entre as ideias e métodos impregnadas nos dias de hoje e as de há um século atrás. Uma obra que, apenas pelo facto de ser rara de encontrar nos tempos actuais, já justifica a sua leitura.
The Runner’s Expert Guide to Stretching
Paul Hobrough
Uma obra dedicada aos alongamentos e a exercícios de fortalecimento. Acima de tudo, trata-se de um guia para exercitar o corpo a todos os níveis, em vez de se sobrecarregar apenas e só os músculos das pernas utilizados durante a corrida. Se ainda hoje se coloca em dúvida a necessidade dos alongamentos, bem como a altura do dia e do treino (antes ou depois do exercício?!) em que estes devem ser executados, este livro do fisioterapeuta Paul Hobrough defende e explica o porquê dos alongamentos serem importantes.
Ao mesmo tempo, o autor defende também um fortalecimento do corpo a todos os níveis (pernas, core, braços, etc), com vista a alcançar um maior rendimento desportivo. Para além de fortalecer o corpo, a exercitação dos vários músculos, dia após dia, juntamente com os alongamentos, tem também como missão evitar o aparecimento de maus hábitos em alguns movimentos. Maus hábitos esses que surgem por força de prácticas repetitivas, como é o caso da corrida, além das más posturas a que tantas vezes o corpo está sujeito durante horas a fio (em casa, no trabalho, etc).
Bem documento, ilustrado, e com explicações para todos os exercícios apresentados, este livro poderá tornar-se num guia imprescindível para o leitor que estiver de acordo com as convicções de Paul Hobrough.
Peak Performance: Elevate Your Game, Avoid Burnout, and Thrive with the New Science of Success
Brad Stulberg, Steve Magness
Este livro foi uma escolha influenciada por textos que li no passado dos seus autores. Uma escolha que, na minha óptica, se revelou muito acertada.
A nossa vida é um reflexo daquilo que somos no desporto. A nossa postura e mentalidade durante o exercício é um reflexo daquilo que somos fora dele. Não será por acaso que muitos atletas de alto rendimento ingressam, tardiamente, no mundo do trabalho, mas com alguma facilidade. O “chip” desses indivíduos já chega lá preparado para superar barreiras e dificuldades, e isso vale muito.
Por seu lado, a condição física destas duas partes (vida em geral, desporto) representam dois pesos, um em cada prato de uma balança, em que o objectivo é mantê-los equilibrados. Quero dizer, um influencia o outro e, portanto, por exemplo, o stress e o cansaço acumulados num dos lados vão ter repercussões negativas no outro. Por aqui fica mais fácil entender que avaliar o sucesso de um atleta de elite pelos treinos que ele faz pode ser muito enganador. Ainda que possa parecer um pouco exagerado, por vezes um plano de treino (ou mesmo uma metodologia!) pode significar muito pouco no sucesso de um atleta se não estiver em consonância com o que acontece nas outras horas do dia. Nomeadamente, as horas de descanso e o equilíbrio emocional do atleta, factores determinantes para a subida de forma tão desejada.
Por outras palavras, em “Peak Performance”, Brad Stulberg e Steve Magness não se preocupam minimamente com planos de treino ou exercícios físicos para o atleta atingir o topo das suas capacidades atléticas. Em vez disso, os autores preocupam-se em demonstrar como tudo o que está para lá do treino e das provas tem muita influência no rendimento físico (e não só!). Aspectos esses que tantas vezes são desconsiderados. Uma vez identificados os possíveis problemas que estarão a condicionar a nossa evolução física, o livro remete-nos para as possíveis soluções.
The Sports Gene: Inside the Science of Extraordinary Athletic Performance
David Epstein
Definitivamente, este é o livro para os grandes apaixonados pela ciência e, sobretudo, pela área da genética. Através de várias investigações, David Epstein fala do impacto da genética no desporto, nomeadamente em como esta permite a alguns atletas atingirem níveis de rendimento que outros precisaram de muito tempo para o alcançar. Tenho de admitir, talvez tenha sido esta constatação que me fez perder algum interesse pelo livro. Ao auto considerar-me um atleta dedicado e não um “talento genético”, o facto do livro “não jogar a meu favor” ter-me-á desmotivado um pouco da sua leitura.
Ao contrário de muitos estudos sobre o rendimento desportivo a partir dos quais qualquer atleta pode aproveitar e implementar ideias, a investigação de Epstein, ao abordar a genética, limita muito a capacidade de intervenção do desportista, impedindo-o de tirar proveito do livro no dia a dia. Apesar do menor interesse que possa abalar o leitor, é benéfico prosseguir com a sua leitura até ao fim, pois há muitos dados científicos e históricos (como as rotas dos povos e como foi influenciada a diversidade genética nas várias regiões do globo) que valem a pena armazenar na memória.
Para o corredor comum, os assuntos mais interessantes estarão na segunda metade do livro, altura em que David Epstein aborda os temas da velocidade (sprinters) e das corridas de longa distância (maratonistas), passando, inevitavelmente, pela Jamaica, no primeiro assunto, e pelo Quénia e Etiópia no segundo.
Endure
Alex Hutchinson
“Endure” pode ser considerado um complemento do “The Sports Gene”. Aqui, a genética continua a ser um dos temas centrais. No entanto, ela preenche as páginas desta obra lado a lado com um outro tema: a influência da mente no nosso rendimento desportivo. E as perguntas são muitas, entre as quais: como trabalha a nossa mente – aquela que Tim Noakes apelida de “governador central” – quando practicamos desportos de competição? Por “culpa” de quem é que abrandamos o ritmo quando estamos muito desgastados durante uma prova? Do corpo? Da cabeça? E quando isso acontece, será que estávamos realmente no nosso limite? Há maneiras de enganar o “governador central”, a fim de prosseguirmos mais um pouco na nossa demanda competitiva? Estas são apenas algumas questões que Alex Hutchinson levanta e tenta responder, ao longo do livro.
Por outro lado, embora estes dois temas principais aparentem estar a uma distância de segurança, o autor faz a ligação entre eles quando coloca a hipótese da nossa capacidade de sofrimento e de resiliência advir da genética.
Além dos muitos estudos que o livro inclui, e das próprias experiências do autor enquanto atleta (foi velocista), é também dada uma grande atenção ao evento em Monza no qual Eliud Kipchoge tentou quebrar a barreira das 2 horas na maratona. Um evento que Alex Hutchinson acompanhou de perto e que – à semelhança do que aconteceu quando Roger Bannister correu a milha em menos de 4 minutos pela primeira vez – exigia uma enorme capacidade física ao aventureiro, mas, sobretudo, uma força mental sobre-humana, pois tal barreira nunca tinha sido ultrapassada.
From Last to First
Charlie Spedding
Um livro extraordinário para quem é competitivo. O título (traduzido para: “De Último a Primeiro”) pode ser um pouco sensacionalista, no sentido em que Charlie Spedding começou muito mal no mundo do desporto, mas acabou por construir uma carreira brilhante. Vale a pena referir o seu ponto alto: 3º na Maratona Olímpica de Los Angeles de 1984, uma vez que a prova foi conquistada por Carlos Lopes. Nesse mesmo ano, o inglês venceu a Maratona de Londres.
Escrito pelo próprio, este livro tem vários pontos de interesse. O principal, a meu ver, corresponde à partilha dos pensamentos do autor no antes, durante, depois das provas, e ainda fora delas. Ao ler os relatos deste atleta de elite (e identificar-se com boa parte deles), o leitor tem a possibilidade de complementar, enriquecer e amadurecer as suas próprias ideias e reflexões sobre o desporto competitivo.
O segundo aspecto relevante tem que ver com o crescimento e desenvolvimento pessoal através dos fracassos e das adversidades que preenchem as nossas vidas. A carreira desportiva de Charlie Spedding levou anos a atingir um patamar de topo, pelo que é um exemplo concreto (em vez de teórico) que se apresenta diante do leitor. Ou seja, Spedding teve que lidar primeiro com o fracasso e a derrota, e só mais tarde com a vitória. Mas nunca sucumbiu ou baixou os braços. Por vontade própria, pois estava em causa algo que o satisfazia, dedicou-se e aprendeu a reagir às dificuldades.
Inevitavelmente, e falando agora de um modo generalizado, este comportamento de luta contra as dificuldades, mais tarde ou mais cedo, repercute-se no quotidiano do indivíduo. Como tal, este livro é também um guia motivacional concreto para aqueles que se apresentam regularmente com a moral em baixo, ou que se vêem rodeados de pessoas que estão constantemente a tentar inferiorizá-los ou marginalizá-los.
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
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