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Crime e Castigo - Fiódor Dostoievski (Relógio D'Água)

Crime e Castigo – Fiódor Dostoievski

Esta história começa com um crime violento (que não é segredo, está na sinopse do livro) cometido por Rodion Raskólnikov, personagem central da história. Acontece que este crime, mais do que pelo seu carácter aterrador, ganha muita intensidade, por força da qualidade da escrita de Dostoievski. O acontecimento, e o que vai na cabeça de Raskólnikov, é descrito com tanto pormenor que, pelo menos no meu caso, terá levado a minha cabeça a imaginar tudo isto com minúcia, durante a leitura, para depois, durante o sono, entreter-se a processar tudo isso, perturbando o meu repouso. E foi assim que tive duas noites de sobressalto, de maneira que na terceira não arrisquei pegar no livro após o jantar.

Mas deixando consequências pessoais para trás, quero ainda falar um pouco mais desta incisão das descrições presentes no livro, naquele que foi o meu primeiro contacto com o autor. Ainda que muitas vezes alongadas, elas são de leitura muito fluída e quase sempre acessível. Pegando mais uma vez em Raskólnikov, o leitor é informado, com detalhe, daquilo que esta personagem vê e regista à sua volta, e de como processa essa informação na sua cabeça, à medida que os pensamentos lhe surgem à superfície. O que também acontece com outras personagens, mas em menos ocasiões. De tudo isto, resultam várias páginas compostas apenas por um ou dois parágrafos. Se numa primeira impressão isso pode ser um pouco assustador, quando confirmamos a fluidez do texto, a apreensão ganha um carácter muito mais amigável.

Dito isto, e olhando agora para a história de “Crime e Castigo”, consigo descortinar pelo menos dois aspectos que intensificaram o encantamento da prosa de Dostoievski sobre mim, à medida que progredia na leitura.

O primeiro diz respeito às questões éticas e morais que o texto levanta, e que permitiriam gerar, se isto fosse um clube de leitura ou de interpretação, inúmeros debates. Interrogações que, não tendo esse seguimento, são também desenvolvidas no seio da própria história, quando (mais uma vez), seja pelo que estão a pensar, seja pelos diálogos, as personagens partilham connosco as suas ideias, dúvidas e convicções, absorvendo o leitor por completo. Creio que o diálogo na esquadra, entre Rodion Raskólnikov e Porfíri Petróvitch, é o maior exemplo disso. Uma conversa que, dotada de uma enorme tensão narrativa, demonstra a pressão que pode ser exercida na nossa própria consciência, por nós próprios ou por outra pessoa, mesmo que a sociedade não seja chamada ao assunto com vista a avaliar e julgar algum comportamento nosso.

De facto, e explorando um pouco o ponto do parágrafo anterior, o que acontece ao longo de toda a história é que Raskólnikov trava uma batalha contra a sua consciência, sendo também este um dos principais aspectos a extrair desta história, para nossa própria reflexão. Quero dizer: não há nada como agirmos de acordo com a nossa consciência, pois quando não o fazemos, o maior Castigo poderá vir daí, e não propriamente do Castigo originário do Crime, se tal acto assim for rotulado pela Sociedade. Se não nos sentirmos afectados pelo que diz a Sociedade, quando confrontamos a ética (e a moralidade) dos nossos próprios actos, as nossas acções apenas serão Crimes se nós próprios as considerarmos como tal e, nesse caso, será da nossa responsabilidade (e tormento?), descobrir como as expiar (como nos castigar), e se o tempo que temos de vida é suficiente para o fazer. Por outro lado, se a pressão da Sociedade for capaz de dominar a pressão da nossa consciência (a nossa complexidade intelectual), o que aos nossos olhos é um Crime, poderá deixar de o ser caso a Sociedade não o considere como tal. Já se o comportamento for condenável pela Sociedade, cumprir o Castigo ditado pela mesma poderá possivelmente fazer-nos sentir aliviados de tal peso. A terminar toda esta suposição, arrisco ainda dizer que sermos nós a assumir e a avaliar os nossos actos, ou deixar essa tarefa para a Sociedade, não será tanto uma questão de escolha quanto o resultado da narrativa da nossa vida até ao momento presente, e do ambiente que envolveu as nossas vivências até à data.

O segundo aspecto da escrita de Dostoievski que tem grande responsabilidade no meu interesse por “Crime e Castigo” é a gestão dos intervalos entre os acontecimentos relatados na obra. Porque, na realidade, os “tempos de transição”, “tempos mortos”, ou o que lhes quiserem chamar, são muito reduzidos. Porém, tal não invalida a existência desses “tempos de respiro”. Ao invés da existência de acontecimentos cuja história poderia passar sem eles, esses tempos de maior acalmia marcam presença nas longas descrições do autor, permitindo ao leitor assentar as ideias nessas alturas (ou pelo menos organizá-las melhor, tendo em conta que muitos temas exigem a nossa atenção muito para lá do tempo de leitura), já que depois não há tempo para tal. Porquê? Ora bem, na minha perspectiva, este elenco é um autêntico desgoverno, no sentido em que não é nada fácil prever as reacções das personagens principais em cada cena, o que resulta num aumento dos níveis de interesse e concentração a cada frase lida.

Muito mais poderia ser dito sobre “Crime e Castigo”, de Fiódor Dostoievski. Esta é apenas uma singular e incompleta opinião, pois toca apenas em alguns dos aspectos mais rememorados por mim, em relação a este livro. E o tema, já abordado em cima, do “peso da nossa consciência” versus “peso das regras da sociedade”, continua a fazer-me muita comichão cá dentro. É inquietante, irónico, e de alguma forma caricato, constatar como tantos de nós, segundo é minha percepção, acusam a pressão da sociedade, ou até das massas, em assuntos comezinhos, o que sugere um maior peso dessa mesma influência em assuntos ainda mais sérios.

Já do outro lado do espectro, onde podemos encontrar Rodion Raskólnikov, essa pressão pode não passar de um grãozito de areia na nossa engrenagem, quando comparada com o rebuliço que vai na nossa consciência. E quando funcionamos desta maneira, podem mil vozes vir-nos dizer o contrário e tentar mitigar o que nos atormenta, que nada será capaz de nos demover ou afectar o “trauma” psicológico que construímos e alimentamos. Contudo, também aqui o autor destranca-nos (mas não a abre!) uma porta, sugerindo que, por vezes, o contacto com a vida de uma pessoa em particular, isto é, a possibilidade de observar de perto a maneira como essa pessoa aceita e lida com as dificuldades que surgem no seu caminho, pode quebrar a nossa barreira psicológica e sobrepor-se à nossa consciência, fazendo a ligação entre o Eu (solitário) e o Mundo em que vivemos. Mesmo que tal acontecimento não seja previsível, programado, ou até intencional. Algo inexplicável. Para todas as partes. Pode acontecer. Pelo menos nas histórias de Dostoievski. Pelo menos? E não é a ficção um espelho da realidade?!

Texto originalmente publicado na plataforma Goodreads.

 

Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.

Renato Sousa

Ligado ao desporto desde pequeno, deixei definitivamente o futebol em 2016 para me dedicar afincadamente ao atletismo. Desde aí que muita coisa mudou na minha vida, a qual não imagino sem o desporto.

O Vida de Maratonista nasce então da minha paixão pelo atletismo, com contribuição especial da minha Licenciatura em Engenharia Informática, que me permitiu criar a solo este espaço de aventura e opinião, e torná-lo agradável a quem o visita.

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