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Maratona De Viena 2024

Mudanças de Velocidade: na Vida, no Atletismo, e no Digital

Com 2024 na sua recta final, já não há volta a dar: a loucura e o entusiasmo em torno da Inteligência Artificial (IA) são um marco deste ano civil. Porém, como eu estou com alguma dificuldade em digerir a euforia – a minha experiência de vida, curta ou longa, apresenta-me razões para ficar desconfortável – e estou um pouco cansado de ver IA por todo o lado, decidi escrever sobre o assunto.

Antes de avançar para o texto propriamente dito, que é um combinado de vivências pessoais e de reflexões sobre o tema, devo confessar que nunca esqueci o facto de, já eu era vivo, circular a ideia de que quando os robôs aparecessem é que isto ia ser bom porque íamos todos trabalhar menos. Aconteceu exactamente o oposto, sobretudo devido à evolução dos meios digitais. Em concreto, refiro-me aos meios de comunicação instantâneos. Se passamos a trabalhar mais, muita da responsabilidade é destes meios, que nos permitem agora incomodar alguém a qualquer hora e dia da semana, perturbando o descanso de quem está do outro lado, ou até umas merecidas férias (para onde muitas pessoas já levam os seus equipamentos). Ou seja, a partir do momento em que se tornou simples e instantâneo enviar uma mensagem a qualquer momento (sendo que não é fácil para toda a gente impor regras a quem abusa desse partido), a definição de “horário fixo” quase que desapareceu. Não apenas no concreto, mas também dentro das nossas cabeças, pois sabendo que podemos ser incomodados a qualquer hora, temos dificuldade em desligar o cérebro do nosso ofício.

Além do mais, exige muito mais esforço e capacidade da nossa parte, quando recebemos uma mensagem de trabalho fora de horas, ter que a aguentar ali na nossa cabeça sem lhe responder. Fica a moer-nos o juízo e causa ansiedade. E se respondermos logo, também sabemos, por experiência, que a resposta por impulso muitas vezes não é a melhor, pois não foi dado o tempo necessário para uma boa análise da situação. Precisamos de tempo (às vezes de muito; o necessário para ir dar uma volta ao mundo e voltar) para processar alguns assuntos. Enquanto a dificuldade no acesso ao email, a ausência de apps de mensagens instantâneas, e o facto de, há uns anos atrás, nem toda a gente ter telemóvel (ou saldo, porque antes pagava-se qualquer mensagem de texto ou chamada), todos estes assuntos, obrigatoriamente, eram atrasados por via das comunicações, o que não só nos permitia respirar, como pensar melhor nas coisas e tomar boas decisões. Hoje em dia, as respostas e as soluções têm de ser no momento, o que não costuma dar bom resultado. Se queremos tomar mais e melhores decisões, e sobretudo criar pontos de respiro ao longo do dia para não atingir uma espécie de burnout, operar a estes ritmos (aliado ao facto de, mentalmente, nunca se sair do escritório) é uma loucura. Por aqui, parece-me claro que a tecnologia (melhor dizendo: o mundo digital, pois há tecnologias primitivas), não conhece limites de operabilidade. Como resultado, nós, a meu ver, estamos a embalar na ideia de que também podemos não ter. Mas temos.

E chegou a altura de saltar para a minha experiência na corrida, que é uma das que tenho com mais profundidade. Começo pela parte do rendimento competitivo. Correr em ritmo de competição não é propriamente natural, ao contrário de treinar a um ritmo tranquilo (segundo a nossa percepção de esforço). Por alguma razão não suportamos durante muito tempo o ritmo competitivo (e sabemos que ele tem um limite). Estamos a operar a uma velocidade que já começa a fugir às nossas capacidades, pelo que é normal não o sustentarmos durante muito tempo. Isto é o nosso corpo a olhar por nós e a não nos deixar esticar demasiado a corda. Por seu lado, o digital não tem este tipo de barreira de segurança.

Sem mudar de assunto, mais interessante até que a reacção do corpo é a resposta mental. Mais uma vez, por experiência própria: tenho tido alguma dificuldade em treinar à tarde, o que está a condicionar os meus treinos bidiários e o acumular de quilómetros semanais. Se, por vezes, tal se deve a desgaste físico, há muito que me apercebi que, na maior parte das ocasiões, isso resulta de um desgaste mental oriundo do meu ofício. Em concreto: à aceleração da resposta a diversos emails e mensagens e a uma alternância constante de assuntos e projectos propriamente ditos. Dito de outro modo, ao final da tarde, tenho muitas vezes o cérebro “queimado” por operar algumas horas a um ritmo mental exigente. E se a cabeça não tiver força para puxar pelo corpo, fica difícil sair à rua para dar uma corrida leve. Foi assim que, além de gostar de fazer o mais importante na primeira parte do dia, passei o treino principal para a parte da manhã. Resumo deste parágrafo: o corpo e a mente, quando fora de um ambiente que não conhece limites, como o digital, mostram as suas limitações.

Posto isto, regresso à tecnologia moderna, para entrar lentamente no assunto da IA. Eu não sou da geração de estudantes que tinha acesso ao ChatGPT. No entanto, já tinha acesso ao Google. Desde essa altura para cá, fui desenvolvendo algumas percepções, quer com o passar natural do tempo (espaço para aprofundar e refinar as ideias), quer com a leitura de livros sobre o assunto. O que comecei a perceber foi que retinha muito pouca informação daquelas pesquisas rápidas no Google para tirar dúvidas. Ou seja, há (porque muitas vezes ainda o faço) o encontrar a resposta no momento, só que como se trata de um “consultar e andar”, o tempo para a consolidação na memória é inexistente e, passado algum tempo, se a mesma pergunta surgir, eu sou capaz de me lembrar que fiz a pesquisa, embora já não tenha a certeza da resposta. Em sentido contrário, se ler sobre a dúvida durante algum tempo ou tiver uma conversa algo prolongada com alguém, há mais tempo para a memória operar e guardar fragmentos dessas experiências. Mais uma vez, é quando opero a uma velocidade demasiado rápida (que também afecta a sua duração), que a informação se perde. Hoje, não é o Google que é consultado, mas sim o ChatGPT, com alunos e trabalhadores a “encomendarem-lhe” os seus pedidos. Que dizer? Que essa oportunidade de aprendizagem, ou acumular da experiência no nosso ofício, se perdeu. Deixa de haver retenção de conhecimentos, o que a longo prazo tem consequências graves nas nossas competências. Operar a uma velocidade natural para nós, automaticamente, concede-nos o tempo necessário para estudarmos o assunto, confrontá-lo com o que já sabíamos, e, por fim, formar novas memórias e opiniões.

No que a este assunto das mudanças de velocidade diz respeito, a questão da memória é para mim a de maior significado. E posso pegar num outro exemplo, este bastante “miudinho”. Uma competição de atletismo é o local onde encontro muita gente conhecida que, por norma, só encontro nessas ocasiões. Ora, o tempo do evento é limitado. Com o passar dos anos, as amizades aumentam e fica complicado falar com toda a gente que gostaríamos. No dia, temos de fazer escolhas, ou subjugarmo-nos às circunstâncias e ficar a falar com quem nos aparece primeiro. Se der para ter uma conversa com 4 ou 5 pessoas de forma prolongada (e, felizmente, ir a pódios muitas vezes ajuda a este cenário, pois há um maior tempo de espera que o permite), já é uma grande conquista. Não apenas numérica, mas no sentido em que trazemos dali memórias sólidas e com significado. Isto é muito complicado no digital: sobretudo porque há um grande risco de sermos mal interpretados quando escrevemos algo por chat (então se já estivermos meio tremidos com alguém, fica ainda mais fácil “pegar de ponta” em qualquer mensagem da qual não conseguimos extrair o tom). Adiante. Todos sabemos que os milhares de amigos no facebook não são mais que um indicador de fachada. Ainda que nos possa dar alguma satisfação momentânea ter tantas pseudo-amizades, não é isso que nos faz mais felizes ou capazes de levar a vida para a frente. Algumas dessas pseudo-amizades podem tornar-se reais (talvez seja essa esperança que nos faz adicionar pessoas) com o passar do tempo, mas serão sempre números muito reduzidos, pois a família e uma boa dezena ou vintena de amigos já nos preenche o tempo de socialização e atenção que, enquanto humanos com tempo de vida limitado, conseguimos dedicar para lá das nossas obrigações. Portanto, aqui não se destaca tanto a velocidade do digital, mas dos seus números, também eles incomportáveis para nós.

Acabei por fugir um bocadinho do tema, pelo que vou voltar à importância da memória. Sem uma memória prenhe de significados e experiências, não somos nada. Doenças como a Alzeihmer assustam-me bastante. Imagino um “apagão” nessas pessoas, que afectará a doente e, arrisco dizer, os seus mais próximos, pois haverá ali uma espécie de fragmentação entre as realidades de vidas que, até à manifestação da doença, estavam em sintonia, e que agora começam a desencaixar. Todavia, se em matéria de doença não temos opção, com as máquinas a história devia ser outra. O livro “Os Superficiais”, de Nicholas Carr, que há alguns dias estive a rever por alto, precisamente por todo este assunto me andar a moer o juízo, diz muito sobre o tema. Passo a citar uma das passagens que para mim é mais importante:

O que nos faz mais humanos, como [Joseph] Weizenbaum acabou por entender, é aquilo que, em nós, é menos computável – as ligações entre a nossa mente e o nosso corpo, as experiências que dão forma à nossa memória e ao nosso pensamento, a nossa capacidade para a emoção e para a empatia. O grande perigo que enfrentamos ao ficarmos mais intimamente envolvidos com os nossos computadores (…) é que começamos a perder a nossa natureza humana e a sacrificar as nossas próprias qualidades que nos separam das máquinas.

[Citação retirada de “Os Superficiais”, de Nicholas Carr; Edição Gradiva; Outubro 2012; Tradução de Luiza Alves da Costa;]

 

Vamos aliviar um pouco a carga emocional e voltar ao atletismo e a outros assuntos. A maratona, por exemplo, é um processo muito mental e físico. Arrisco dizer que a aventura fica gravada em ambos os sítios. É uma experiência vivida por inteiro fora da tecnologia e que opera a uma velocidade que nos é comportável (a distância da maratona exige muito respeito, pelo que a velocidade é mais moderada. Contudo, note-se que aqui incluo todo o processo de preparação para o grande dia, que é o que reforça o seu significado, e não apenas a maratona per se). Já um debate entre amigos (quando se respeita e ouve a opinião de quem está do outro lado) é a melhor coisa que nos pode acontecer para aprofundarmos o assunto em questão: não apenas durante o tempo que dura o diálogo, mas porque nas horas e dias seguintes vamos provavelmente ficar a pensar nas opiniões do outro, reflectir sobre elas e, se for o caso, ajustar as nossas convicções. Dê no que der, vamos sempre reforçar as nossas memórias, e em diferentes perspectivas: no que toca ao assunto; no significado daquela experiência social; num provável reforçar da amizade e o/ou respeito pela outra pessoa; E sempre a velocidades que nos são comportáveis.

Por outro lado, se estivermos a ver um vídeo no youtube (em que há um orador) que está a ser reproduzido à velocidade 2.0, além da dificuldade em compreender o orador (se este falar muito rápido por natureza), fica igualmente complicado reter a informação que ele nos está a tentar passar. A única coisa que é possível extrair daqui é o poder dizer a alguém que “vimos o vídeo”, o que não passa de mera estatística (ausente de substância). Um outro exemplo, banal e óbvio, é uma “conversa” com o ChatGPT. Quando lhe perguntamos qualquer coisa, veja-se a velocidade com que ele nos apresenta uma resposta com várias dezenas ou centenas de palavras. Há aqui uma clara diferença de velocidades nesta conversa, tendo ele de esperar que o humano que fala com ele leia tudo o que ele escreveu. Em alternativa, o humano irá ler o que ele escreveu na diagonal e responder sem “processar” todo o texto. De um lado ou do outro, tem de haver um ajuste de velocidade.

Antes de terminar, queria ainda dar um outro exemplo, simples, dos sintomas provocados pelo excesso de tempo no digital. Porque, dada a frequência elevada deste contacto, parece-me que o Ser Humano tenta sintonizar-se com os tais ritmos que não são dele. No meu caso, noto isso de manhã, antes de começar a trabalhar ou a treinar. Isto é: há uma diferença muito grande em entrar ao serviço de uma destas tarefas se antes: estive a consultar redes sociais, emails, ou a realizar pesquisas na Internet (primeiro cenário); ou se estive, por exemplo, a ler um livro ou a caminhar lá fora (segundo cenário). No primeiro caso, vou muito mais “acelerado”, o que depois se prolonga pelo resto do dia. Aliás, mesmo em situações em que tinha a agenda diária mais do que controlada, já dei por mim a fazer as coisas em grande stress. Em algumas, interroguei-me: onde vais com tanta pressa? Percebi que a lado nenhum. Mas nem com esta resposta clara deixa de ser complicado voltar ao ritmo normal: leva algum tempo, de preferência, longe do digital.

Para concluir (e desculpem o texto tão longo, mas uma melhor expressão das minhas ideias, e de forma mais sucinta, é algo que precisa de mais tempo da minha parte dedicado à escrita [e nunca delegado ao ChatGPT]), a tecnologia pode dar-nos a ideia de que somos mais produtivos e conseguimos fazer mais coisas. Num trabalho mais mecânico, e em algumas outras situações, isso até pode ser verdade, porém, na maior parte das situações, isso parece-me uma ilusão, além de algumas consequências que pode ter para a nossa saúde (implicitamente contidas nesta reflexão). Talvez seja bom repensar o significado de “produtividade (humana)”, no sentido de dar mais valor à retenção de memórias e experiências profundas, a fim de que as nossas vidas se encham de significado (e isto vai de uma ponta à outra do espectro humano: do conhecimento e da racionalidade ao social e emotivo): porque isso é que dos dá alento e confiança para ir em frente e uma maior compreensão das situações das pessoas que nos rodeiam. Tudo isto, continuo convicto após escrever este longo texto, requer uma velocidade que nos seja sustentável. E esta parte final traz-me à memória (e aqui estou a cruzar a informação e as vivências que tenho cá dentro) a Maratona de Amesterdão. O percurso dá a volta a um lago onde, entre muitas outras coisas, é possível ver um moinho gigante. Tive um amigo que não viu o moinho. Isto para dizer que quando levamos a vida a alta velocidade (e é isso que a Inteligência Artificial bem alicerçada no digital nos promete: ainda mais velocidade), passamos por ela sem dar pelo que de mais importante ela tem: a paisagem (que aqui representa a natureza), os animais e as pessoas. Quando recordo Amesterdão, ou outras aventuras lá fora, recordo muito das horas de prova e do nervosismo antes das mesmas. Contudo, se fosse a separar essas memórias em duas malas diferentes: convívios numa, experiências associadas à maratona em si na outra, para trazer no avião, podem acreditar que a mala da socialização vinha muito mais pesada. E isto não se deve apenas ao facto de estar mais recheada de peripécias, mas também porque, precisamente por se estar longe e, de alguma forma, mais desligado do digital, a velocidade empregue permite construir e gravar algo mais profundo.

Boas corridas!

 

Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.

 

Ligado ao desporto desde pequeno, deixei definitivamente o futebol em 2016 para me dedicar afincadamente ao atletismo. Desde aí que muita coisa mudou na minha vida, a qual não imagino sem o desporto.

O Vida de Maratonista nasce então da minha paixão pelo atletismo, com contribuição especial da minha Licenciatura em Engenharia Informática, que me permitiu criar a solo este espaço de aventura e opinião, e torná-lo agradável a quem o visita.

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