No passado dia 21 de Abril, estive presente na 41ª edição da Maratona de Viena…
Deambulações sobre a Maratona
Preparar novamente uma maratona, mais de dois anos depois, está a fazer-me bem. A evidência surge quando olho para o meu registo diário das últimas semanas e ele comprova que ando focado. Comprometido. Alinhado com os meus princípios e, finalmente, dedicado. Mas esta aura, entenda-se, não é exclusiva da maratona. Começa é com ela! Por esta altura, embora sejam permitidas (e até precisas) excepções, os meus dias começam com o trabalho para a maratona. E isso dá-me um embalo que talvez seja determinante nos resultados alcançados ao longo dessas 24h, noutras tarefas. Afinal de contas, o mesmo espírito parece transitar para os restantes compromissos diários, igualmente importantes. Diria que é um efeito bola de neve (dos bons) dotado de características essenciais para intensificar a disciplina e o discernimento e distanciar a procrastinação.
Até aqui, tudo (muito) bem. E espero que assim continue. A dúvida surge-me quando, sem necessidade (como disse, está tudo a correr bem) dou dois passos atrás, para fora deste cenário que montei, e tento perceber: a que se deve esta dedicação? Porque se há prova que implica muito tempo na estrada (e não estou a falar de intensidade), entre as distâncias mais tradicionais, ela é, sem dúvida, a maratona. Uma boa preparação implica uma quilometragem assinalável. Durante essa longa travessia, há tempo para pensar em tudo e mais alguma coisa. Existe liberdade de reflexão, à semelhança de quando andava na escola e o tema da composição de português era livre. E então, desde há uns dias para cá, tenho tentado perceber se me levanto da cama ao primeiro toque do despertador porque: tenho medo de falhar no grande dia, para o qual me inscrevi por algum tipo de impulso entusiástico; ou se o faço porque de facto aprecio esse processo e essa aventura no seu todo, isto é, essa relação.
Sim, talvez este termo seja adequado. A maratona é um evento, mas é impossível não desenvolver uma relação com ela, quando a preparação implica que ela cruze a nossa mente durante muitas horas, todos os dias. Chegado a este ponto, porque não ir um pouco mais longe: será uma relação de amor? Parece um termo demasiado forte. De acordo. Todavia, tendo em conta o que estou a tentar destrinçar, foi o único paralelismo que me trouxe algum feedback de volta.
Porque há vários tipos de amor. E, colocando a minha dúvida em contexto, novas perguntas tomam o lugar da anterior. Será um amor platónico? Totalmente desprovido de interesses, um “mero” encanto por esta menina de 42K?! Narcísico e instrumental? Tendo em conta que é uma bela maneira de provar a mim mesmo a minha capacidade de superação, e de tirar prazer e satisfação desse amadurecimento e evolução? Ou um amor de fachada, propulsionado pelos outros e pela sociedade em geral, que subsiste à boleia do medo de perder esse reconhecimento ou da necessidade de exposição?
Ora, como não me disseram que podia responder “sim” a todas estas questões, a primeira coisa que vos tenho a dizer é que apanhei um grande susto. Ao olhar para dentro de mim, por força das dúvidas que começaram na estrada e chegaram a este texto, descobri que não tinha apenas um mecanismo, entre os três possíveis, elencados em cima. Tinha os três!!! E agora que o descobri, parece-me óbvio.
Ou seja, (e sei que isto é um pouco anticlímax, mas não tenho pulso no destino das minhas divagações), a assumpção de que só havia uma resposta certa, deitou por terra minutos e minutos de reflexão. Juntando aqui uma pitada de ciência, a verdade é que pareço ter receptores (e peptídeos!) para os diferentes tipos de amor, pelo que a motivação que encontro de manhã cedo não tem origem sempre nas mesmas moléculas, ainda que assim o possa parecer. Se os receptores são vários, as necessidades são várias. E não é assim mesmo? Continuando com o mesmo tema: não tem o Ser Humano a necessidade de amar? A si próprio? E também aos outros? E ainda de se sentir amado?
Reforço. A maratona é um evento. Não é uma pessoa. Como tal, pode não me oferecer todos estes tipos de amor no seu expoente máximo. Contudo, no meu caso pessoal, proporciona-me doses q.b. de todos eles, mantendo os três mecanismos oleados e operacionais, e isso confere-me equilíbrio. Da mesma forma que as redes sociais exibem a necessidade das pessoas de receberem atenção e serem reconhecidas, a maratona, quando percorrida por inteiro, ou com uma marca de acordo com as nossas capacidades e expectativas, traz consigo a admiração e apreciação dos outros. Isso, como acontece com qualquer trabalhador que vê o seu esforço reconhecido e elogiado, enche-nos o coração de afecto, proporcionado por alguém que não o “nosso Narciso”. Pelo menos por algum tempo.
Em paralelo, e por falar no Narciso, encontro na maratona a alavanca que me faz querer ser melhor. Em tudo. Isto vai muito para lá da questão desportiva e, como disse antes, não se resume apenas ao périplo percorrido até ao grande dia, preenchido de aventuras (algumas delas, só de ver o programa causam ansiedade e apreensão), mas ao espírito que é cultivado, na maioria dos casos, ao nascer do dia. É uma espécie de volta idêntica ao que a Terra dá sobre si própria, em cerca de 24 horas, e que muda a perspectiva do Sol em relação à nossa posição. O que quero dizer é que essa capacidade de resiliência e de entrega aos desafios e à adversidade cresce ao longo do dia, e depois, tal como o Sol, começa a mitigar-se, dando lugar à preguiça e à procrastinação. Um momento que é de respiro e permite dar conta da nossa satisfação para connosco próprios. E, com esforço, até se impregnar o hábito, o ciclo repete-se no dia seguinte. E no outro. E assim sucessivamente, fortalecendo o pilar do amor próprio.
Finalmente, a pergunta torna-se oportuna: não se aplica isto a todas as outras distâncias de corrida, maiores ou mais pequenas? Sim. E não, para o meu caso, neste momento. Porque as outras distâncias agradam-me, mas é esta que continua a ser a menina dos meus olhos. É um deslumbre que tenho, alicerçado apenas e só nisso: no deslumbre. Não depende de X ou de Y. Não depende de nada. Pura e simplesmente, existe. O tal amor platónico, desprovido de interesses ou, se preferirem, alienado dos resultados e das experiências que todas as competições em que já participei me ofereceram e que poderiam enviesar essa a minha perspectiva. Não quer dizer que este deslumbre não possa ser arrumado num canto, ofuscado por outras vivência mais fortes e inesperadas (as tais que podem provir de outras provas). O que me intriga, e para terminar, é que este amor platónico pela maratona funciona como a peça chave de toda a rotina. É o interruptor que coloca toda a engrenagem em movimento, comprometendo toda a lógica em que eu me poderia basear para explicar o bom funcionamento do meu dia. E uma vez que ele arranca com algo ilógico, fico totalmente desprovido de argumentos. Depois de tantas voltas, dá para acreditar?!
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
Créditos Foto: Corrida Milionária
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