Se é sabido que não se deve julgar um livro pela sua capa, o mesmo…
As reais implicações da suspensão de Alberto Salazar – Opinião
Nos últimos dias, a USADA suspendeu Alberto Salazar de todas as suas funções ligadas ao atletismo, acusando-o de tentar contornar o processo de controlo anti-doping, quer por via de tráfico de substâncias, quer por administração das mesmas. O mesmo castigo foi também aplicado ao Dr. Jeffrey Brown, médico endócrinologista que trabalhava com Salazar no NOP (Nike Oregon Project) e que é acusado de cumplicidade neste esquema. A declaração oficial da USADA (Agência Norte-Americana de Antidopagem) sobre o assunto pode ser lida aqui na íntegra.
Treinador de vários atletas medalhados (Mo Farah, Sifan Hassan, Galen Rupp), e principal responsável do projeto de alto rendimento “Nike Oregon Project”, esta decisão da USADA teve efeitos imediatos, o que valeu a Salazar a perda da credencial para os Campeonatos Mundiais de Atletismo que decorrem em Doha, no Catar.
O grande “problema” desta suspensão de Salazar não é a notícia em si, mas todas as repercussões que se colocam em perspetiva. Uma espécie de mancha incontrolável que se espalha rapidamente por uma toalha quando nela viramos algum líquido. Por muito que não se queira, é impossível não se pensar nos cenários mais tristes. Afinal de contas, esta investigação já durava há 4 anos (pelo menos!). Um intervalo de tempo em que declarações de vários intervenientes fizeram “soar os alarmes”.
As declarações de Travis Tygart sobre o caso
De facto, as declarações recentes do CEO da USADA, Travis Tygart, ao canal televisivo alemão ZDF, revelam que a sua agência contou com a colaboração de vários atletas que passaram pelo NOP. O problema é que Travis disse mais coisas, algumas delas não agoirando nada de bom. Não para Salazar, que é certo que vai ter a vida muito complicada daqui em diante, mas para vários atletas. Alguns já se manifestaram, mas certamente que ao longo dos próximos dias vão continuar a surgir novas declarações.
De volta às palavras de Travis Tygart, o responsável pela Agência Norte-Americana de Antidopagem disse o seguinte:
[blockquote align=”none” author=”Travis Tygart, USADA”]Vocês têm de entender que os atletas não tinham qualquer ideia do que se estava a passar com eles, do que lhes estava a ser dado. Qual a dosagem, se os métodos eram proibidos ou não, eles não sabiam.[/blockquote]
[blockquote align=”none” author=”Travis Tygart, USADA”]Eles mentiram aos atletas e fizeram experiências médicas neles no NOP (Nike Oregon Project). Os atletas eram enviados ao médico e era-lhes dito que deviam simplesmente confiar nele.[/blockquote]
Estas traduções são da minha autoria. Em caso de qualquer suspeita ou validação, podem consultar o artigo do jornal The Guardian onde as recolhi.
Se Tygart pretendia com estas declarações proteger os atletas e todos os que ajudaram a USADA a investigar este processo, creio que o efeito foi totalmente contrário. O que estas palavras indiciam é que alguns dos envolvidos neste projeto possam realmente ter competido dopados. Para os leitores que só ficaram a par deste assunto no dia da suspensão de Alberto Salazar, informo que o NOP foi perdendo alguns atletas conceituados num passado recente. Por exemplo, o mediático Mo Farah abandonou o projeto em Outubro de 2017, enquanto Matthew Centrowitz saiu em Novembro de 2018.
O esquema de doping de Alberto Salazar e Jeffrey Brown
Sendo este um tema muito grave e sensível, há que ter muito cuidado com as interpretações e afirmações que se fazem, o que torna quase obrigatório ir aos meandros da investigação. Após a leitura de vários artigos, com destaque para o de David Epstein publicado no site da ProPublica, cheguei à conclusão que este esquema de doping resume-se a três palavras-chave: Asma, Tiróide e L-Carnitina.
O primeiro já não será novidade para muitos, pois ainda recentemente colocou o ciclista Chris Froom em cheque. No que diz respeito à tiróide, segundo alguns especialistas, as hormonas injetadas potenciam a perda de peso e um maior sentido de alerta no indivíduo. No caso da L-Carnitina, níveis elevados ajudam a converter a gordura em energia. Não sendo a L-Carnitina proibida, o problema aqui reside no método e na dosagem administrada pelo Dr. Brown. Com o limite permitido a ser de 50 mililitros, o médico recorria ao processo de infusão para, durante algumas horas, administrar cerca de 1 litro!
A colaboração dos atletas na investigação ao Nike Oregon Project
A explicação do parágrafo anterior, embora maçadora, serve para prosseguir o meu raciocínio. Quando Travis vem em defesa dos atletas, há um lado de mim que percebe a sua atitude, pois eles colaboraram e ajudaram nesta luta pela verdade desportiva. Embora os nomes dos “colaboradores da USADA” não sejam revelados, algumas declarações proferidas nos últimos anos já indiciavam suspeitas sobre os métodos extra-treino do principal responsável do NOP.
Ao mesmo tempo, mais até do que a suspensão a Salazar, estas palavras do CEO da USADA são para mim o mais forte indício que alguns atletas alegadamente correram dopados. No caso de isso se verificar, o que vão dizer os acusados? Que não sabiam que estavam a ser dopados pelo médico e pelo receituário que lhes era passado? Independentemente do que possam alegar em sua defesa, parece-me sensato que a prioridade seja garantir que todos os atletas extra-NOP não sejam prejudicados. No caso de dúvida em resultados de competições passadas, eles têm que ser os primeiros a ser considerados.
Jenny Simpson sobre a suspensão de Alberto Salazar
As palavras de Jenny Simpson, após correr a primeira eliminatória dos 1500m nos Mundiais de Doha, vão de encontro ao facto desta suspensão não ter causado surpresa naqueles que acompanham minimamente as notícias internacionais. Isto é, rumor infundado ou não, sempre pairou uma espécie de nuvem negra sobre o grupo de treino do Nike Oregon Project.
Balanceado por este discurso da Jenny Simpson, ganha força o meu lado que rejeita por completo qualquer tipo de desculpa para os atletas cujas suspeitas se intensifiquem. Afinal, mesmo que o cenário das “idas ao médico” possa ter ocorrido de diversas maneiras, não posso deixar de ficar incrédulo quando se fala em infusões. Então mas é normal uma pessoa receber uma infusão? Ainda para mais num mundo como o do atletismo e do desporto em geral, onde este termo, a par de “injeção”, serão as pontes mais fáceis para se fazer a ligação com o doping? Eu nunca estive num projeto de alto rendimento, mas a minha cabeça diz-me que estes processos não devem ser de todo normais ou rotineiros. Os “pacientes” achavam isto normal?
A posição da Nike neste escândalo com o seu nome
Por último, uma palavra para a Nike, que para já manifestou o seu apoio a Alberto Salazar. Embora tenha sofrido uma ligeira queda na bolsa de Nova Iorque, a marca parece estar a passar pelos pingos da chuva de toda esta tempestade. Pelo menos nos meios de comunicação fora dos Estados Unidos. Com o seu nome explícito no projeto: Nike Oregon Project, a sua responsabilidade neste escândalo é enorme. Como tal, e já depois de um acumular de grandes dissabores (ex: Lance Armstrong), este poderá ser também um momento de reflexão para a marca sobre os projetos e atletas que quer patrocinar, caso queira ficar associada ao correr e pedalar limpo.
Veremos o que nos reservam os próximos capítulos que não se adivinham nada risonhos, mesmo podendo este ser um mal que vem por bem. O mal está feito, o clima de suspeição está novamente instalado, e isto é tudo o que os amantes e praticantes de atletismo não desejam nem precisam.
Foto de Capa do Artigo: Cal Hopkins / CalHopkins at en.wikipedia [Public domain], via Wikimedia Commons
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