Há duas semanas atrás, na Corrida de S. Pedro (Póvoa de Varzim), utilizei as mesmas…
Roubados pelos próprios relógios GPS – Atletismo
Nos últimos dias, dei por mim a constatar (mais vezes que o normal) o poder que os hábitos e as modas da nossa época têm sobre nós. Como rapidamente influenciam as nossas interpretações e se tornam a nossa realidade. A NOSSA verdade! Como Friedrich Nietzsche disse:
Todas as coisas são alvo de interpretação. A interpretação que prevalecer numa certa época é resultado de poder e não de verdade.
Quando ingressei no atletismo, os relógios GPS já estavam na moda. Não demorei muito a comprar um para me auxiliar nos treinos e nas provas. Porém, o auxílio rapidamente passou a dependência. Uma dependência que se tornou tão grande pela força do hábito que eu nem dei por aquilo que ela me conseguiu ocultar. Refiro-me às lacunas dos relógios GPS. Tenho a certeza que não sou caso único, daí hoje estar a partilhar este desabafo.
A pista, o relógio GPS e as provas certificadas
No início da minha carreira, não tive qualquer contacto com a pista. Já por estes dias, ainda que a minha estreia oficial neste piso ainda esteja por acontecer, certo é que não deixo de frequentar a pista em algumas alturas do meu plano de treinos.
Ora, como tenho relógio, nem me preocupo em usar as linhas existentes no tartan. Mesmo que tenha que fazer desvios de outras pessoas que possam estar a treinar ou afins, para quê estar preocupado com estas coisas, se posso definir a distância e o descanso no meu relógio e depois ele trata de me dar as ordens? Pois. Parece tudo muito bonito, mas esta é uma despreocupação que contribui para a minha dependência para com o relógio e a minha falta de atenção para quem se preocupa em dar-me os números reais que eu tanto quero.
Ora, eu sei que o relógio GPS não é 100% fiável. Eu sei que as pistas de atletismo é que têm a distância correta. Eu fui relembrado, há poucos dias atrás, que existem provas de estrada que são certificadas.
Mas então, como consegui empurrar tudo isto para um canto da minha memória? Extraordinário como só damos por algumas coisas tão evidentes quando voltamos a ler sobre elas ou nos voltam a tocar no assunto. Muitos vivem cegos pelo amor. Eu andei cego por causa de um acessório de pulso que fala com satélites do espaço. Parece que há cegos para tudo! Felizmente, já consegui abrir os olhos. Ou melhor, abriram-me!
Um ritmo mais rápido ou um recorde pessoal?
A minha salvação começou no passado dia 1 deste mês. Estive presente na XXX Corrida de S. Pedro (Póvoa de Varzim), tendo lá chegado com o intuito de atacar o meu recorde pessoal aos 10K. Consegui preparar-me mentalmente e fisicamente para alcançar o objetivo e estou muito feliz por o ter conseguido. Contudo, agora tenho um motivo extra de felicidade. Se não o tivesse conseguido, este artigo não exista. Pelo menos, não por esta altura.
Quando conclui a prova, o meu relógio marcava um ritmo médio de 3:23/KM e uma distância percorrida de 9.84K. Já lá vão muitas provas com ele no pulso, pelo que sei de antemão que o meu relógio só começa a sincronizar uns segundos depois da confusão da partida. Vejam lá que até aqui sou cúmplice da minha própria cegueira.
Como ia a dizer, fiz então o cruzamento do tempo que tinha no relógio (33 minutos 21 segundos) e do tempo oficial na prova (33 minutos 26 segundos). Este último é sempre superior ao que tenho no relógio, devido ao tal atraso na sincronização. Após os cálculos, cheguei então a uma distância de 9.88K. Precisamente a que tinha registado no ano anterior. Só que este ano eu tinha um dado extra seguríssimo. Fiz todas as curvas direitinhas, sem o mínimo de corte de caminho, precisamente com vista aos 10K. Pelos vistos o ano passado também, mas isso já não me recordava.
No final, descartei os 120m de diferença, tendo mais tarde partilhado numa rede social a minha felicidade por ter alcançado o meu ritmo mais rápido de sempre. Um ritmo que me encaixa, sem margem para dúvidas, na casa dos 33 minutos aos 10K. Não podia anunciar um recorde pessoal oficial numa distância que não cheguei a completar. Eu que até sou algo picuinhas nestas coisas. Quando é a mais, tudo bem. A menos é que não!
O alerta para as provas certificadas na estrada
Feliz e encantado da vida sobre o que tinha conseguido naquele domingo, o abre-olhos sobre o GPS surgiu uns dias depois da minha publicação na tal rede social. O atleta Bruno Freitas comentou a minha publicação, alertando-me para o facto da Corrida de S. Pedro ser certificada na distância e que os GPSs podem ser enganadores. Se o primeiro ponto me passava ao lado, o segundo é o já mencionado “óbvio”.
Logo após a chamada de atenção, decidido a não voltar a ficar cego por um equipamento que tem muito de útil, mas com o qual temos de estar sempre atentos, decidi-me a investigar este tema mais a fundo. Concluído o estudo, agora venho para aqui mostrar-vos que o trabalho de casa foi feito, passando a referenciar alguns pontos que podem interferir com o trabalho dos nossos relógios GPS.
Quando os relógios GPS e as provas de atletismo se juntam
Para ficarem sintonizados, os relógios GPS têm que se conseguir ligar a um conjunto de satélites disponíveis no espaço. Após estabelecida essa ligação, à medida que vamos correndo, o equipamento vai calculando a interseção resultante do raio de ação dos vários satélites com o qual tem ligação estabelecida. Esta interseção representa o ponto onde nós estamos naquele preciso momento. Quem diz nós, diz o relógio.
Assim sendo, uma vez ligado aos satélites necessários, o equipamentos GPS vai efetuando várias leituras da nossa posição, à medida que a corrida avança. Uma leitura pode levar entre 1 a 20 segundos a ser efetuada. Com a tecnologia disponível hoje em dia, sou levado a crer que o intervalo maior já será coisa rara.
Todavia, mesmo que a leitura seja feita suponhamos num segundo, a dita cuja nunca vai ser instantânea. Quer isto dizer que está aqui aberta a porta para as diferenças que podem surgir no final de uma corrida em relação ao cálculo do GPS e a distância real.
Quanto mais tempo o equipamento precisar para gravar as leituras, a margem de erro provavelmente será maior. Quem diz tempo, diz distância. Isto é, os relógios nos pulsos dos corredores mais rápidos são propícios a uma maior margem de erro. Vamos já daqui a pouco descobrir porquê.
Como o relógio GPS calcula a distância percorrida
Basicamente, cada leitura feita pelo equipamento significa um ponto no mapa. O que o relógio faz é unir esses pontos com linhas direitas. Se em percursos sempre a direito é tudo muito fácil, em troços com curvas o cenário agrava-se um pouco.
Imaginemos um retorno a 180º. Aqueles que nos permitem inverter o sentido. Nós a fazer a curva toda direitinha e o malandro do GPS a cortar caminho e a traçar as tais linhas retas entre pontos. Voltando atrás, se o equipamento demora 1 ou mais segundos a fazer a leitura, enquanto nós damos a curva em jeito de semi-círculo, ele provavelmente vai fazê-la em jeito de retângulo.
O problema é que dentro deste problema existe um outro problema. Chamem-lhe obstruções, bloqueios, o que quiserem. Em zonas com muitas árvores e/ou edifícios, podem surgir dificuldades extra de leitura. Digamos que é feito um bloqueio à sincronização estabelecida entre o GPS e os satélites. Como noutras circunstâncias, estas são alturas de elevado risco da sincronização ser perdida, ou pelo menos de implicar mais tempo por cada leitura efetuada.
Posto isto, tentem agora visualizar a questão da leitura dos pontos GPS numa curva com dificuldades de leitura. Amigos, é aqui que entra a questão dos atletas mais rápidos e mais lentos. No final das contas, os dois devem ser roubados na mesma medida. Passo a explicar.
Se o GPS faz uma leitura no início do retorno e depois leva 4 a 5 segundos a fazer uma segunda leitura, é fácil perceber que um atleta rápido já fez o retorno e vai muito mais à frente que outro atleta mais lento. Resumindo, a ligação entre os pontos nem é semi circular, nem retangular. O mais certo é ser triangular.
Por outro lado, os atletas mais lentos são capazes de ainda serem apanhados no retorno ou ligeiramente à frente, aquando da segunda leitura. A questão é que os atletas mais lentos normalmente vêm em grupos, o que significa que muitos deles fazem este tipo de curvas mais por fora que os atletas rápidos que tantas vezes seguem isolados. Feitas as contas, deve dar ela por ela. Acho que esta explicação textual dá para perceber a ideia. Nunca fui bom a desenho …
Então o que podemos concluir sobre os relógios GPS?
Depois desta (tentativa) de explicação textual, dá para perceber que na pista são as curvas que contribuem para as pequenas diferenças que por vezes surgem.
Já em treinos com amigos, os relógios dão sempre diferenças, não apenas porque não fazemos exatamente a mesma linha de percurso, mas também porque os relógios GPS e as respetivas marcas podem usar algoritmos diferentes de cálculo.
Vamos às contas. Segundo um infográfico disponibilizado pela famosa organização de maratonas, Rock ‘n’ Roll (partilhado já de seguida), no final de uma meia maratona a discrepância entre a distância real percorrida e a do relógio GPS pode variar entre 1 e 3%. Sem ser exato, até porque nenhuma das contas em causa até agora é exata, 3% numa meia maratona corresponde a mais de 600m. É muita fruta, atletas!
Em defesa dos relógios GPS
Porque nem tudo são roubos, também já tive uma peripécia com o meu relógio que ele pode usar contra mim quando o acusar de roubo. Uma peripécia que tem piada porque correu tudo bem, mas que na altura podia ter sido um momento muito sério de frustração para mim.
Maratona de Amesterdão 2016. Ainda hoje não sei o que se passou com o meu relógio nesse dia. Desde o momento da partida, o relógio nunca apresentou um ritmo de prova próximo da realidade. Só me apercebi do problema por volta do quilómetro 16-17. Isto porque havia placas com os números de todos os quilómetros e eu comecei a achar estranho a diferença entre elas e o meu relógio a ser cada vez maior.
Resumo da história. Estão-me a ver a fazer contas de cabeça, quilómetro após quilómetro, para voltar a entrar dentro do objetivo que tinha estipulado? Foi precisamente isso que aconteceu. Em cada barreira que passava tentava decorar as horas que tinha no relógio e no seguinte subtraía.
O relógio disse-me sempre que estava mais rápido do que na realidade estava. No final da maratona, o relógio deu-me SÓ cerca de 5 quilómetros a mais e uns ritmos brutais. Podem ver as imagens que tirei do Garmin Connect e que não correspondem, naturalmente, ao meu desempenho real na prova. Terá sido a mudança de país que o afetou? A viagem de avião? Não faço a mínima …
Conclusão
Portanto, enquanto uns confiam totalmente na distância apontada no regulamento das provas – às vezes marcam 10K, quando na realidade têm 9600 metros e já são recordes pessoais para alguns – outros confiam totalmente nos seus relógios GPS (o meu caso).
Resultado disto tudo? Uma grande confusão. Uns batem recordes ali, outros acolá, e assim é a vida no atletismo de estrada. Depois desta longa história, eu próprio sinto condições para assumir a minha marca na Póvoa de Varzim como oficial aos 10K e usar como referência no futuro.
Mas … também não me vou esquecer que ainda há gente a dizer: queres uma marca certificada? Vai à pista! O tal dia da minha jornada que tarda em chegar porque ainda não fui decidido o suficiente para lá ir em prol de uma prova de estrada.
Amigos, não se escondam dos satélites!
Fontes: Rock ‘n’ Roll Marathon Series, Running Advice
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