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Musicofilia Atletismo

Música, droga, e um passo de corrida

Entre a condição física e mental de um atleta, é difícil ser exacto na percentagem que cada uma destas partes detém, no que toca ao rendimento desportivo. Contudo, salvo as excepções em que a condição física seja péssima, parece-me claro, até por experiência, que esta divisão será em favor do psicológico ou, na pior das hipóteses, equitativa.

Se assim não fosse, como justificar que alguns atletas tenham por vezes rendimentos tão díspares, num curto intervalo de tempo, em que pouco muda no seu trabalho desportivo e na sua vida para lá dele? Isto parece-me ainda mais evidente nos desportos colectivos, nos quais, por exemplo, sofrer um golpe de teatro no final de um encontro pode levar a equipa a claudicar nos seguintes. Aqui, mais uma vez, a variação física foi insignificante. A “cabeça do grupo” é que mudou consideravelmente.

Portanto, não tem isto que ver com o que assombra a nossa mente nos diferentes momentos? Ao contrário do corpo, a mente parece mais susceptível de sofrer transformações num curto espaço de tempo. Seja: como no exemplo em cima, devido a um resultado menos bom; por causa de um livro que lemos e mudou a nossa perspectiva; por um acontecimento familiar que nos deixou incrédulos; entre outras coisas. Tudo isto resulta na transformação de novas memórias na nossa cabeça. E, com a sua chegada, outras podem ser apagadas, substituídas, ou arrumadas num canto do nosso cérebro, em prol das que acabaram de chegar, caso se confirmem relevantes.

Em resumo, este processo ininterrupto da memória e da experiência molda a nossa consciência actual de uma forma que nos faz olhar para o passado e planear o futuro de uma maneira diferente da que tínhamos há uma hora atrás, ontem, ou na semana passada. Ou seja, estamos a atender ao mesmo tempo o nosso passado, presente e futuro.

Como resultado disto, no caso do atletismo em concreto, em cada prova temos uma previsão do nosso desempenho. Salvo quando se trata de uma estreia na distância ou na modalidade (mesmo nestes casos, também costuma existir algum tipo de referência). Uma previsão que resulta precisamente de toda a experiência acumulada no passado e que costuma ficar muito perto do resultado alcançado. Mas isto significa que a nossa previsão foi de facto acertada? Ou, simplesmente, foi essa nossa ideia, com recurso à nossa própria memória, que programou o cérebro para um desempenho dentro dessas expectativas? Parece-me uma pergunta pertinente, para a qual, infelizmente, não tenho resposta. Mas tenho mais divagações!

A propósito do meu regresso à competição, há dias atrás, sem dúvida que já tinha experiência acumulada e um ritmo expectável. No entanto, devido a uma pausa tão grande, pairava também uma grande sensação de desfrute, que, por norma, prevalece sobre a capacidade analítica da nossa mente, seja ela mais optimista ou pessimista. Afinal, também me parece um facto que é a regularidade de provas que abafa esta capacidade de desfrute e torna mais presente as experiências das últimas corridas.

Por outras palavras, a rotina assume o comando e, quando isto se verifica, ficamos mais reféns de toda a nossa experiência. Isto pode ser bom, quando se procura manter a regularidade. Porém, quando se procura superação, a única via possível parece-me, por agora, ser a capacidade de nos envolvermos no momento presente: seja por via do desfrute do que estamos a fazer; do foco na rivalidade com outros participantes; na apreciação do público (agora em falta) neste tipo de eventos; nos familiares e amigos que correm connosco na nossa cabeça e/ou no coração; ou por outro tipo de fenómeno que seja capaz de sacudir da nossa frente o passado e o futuro e deixar o corpo trabalhar sossegado, isto é, dar um passo após o outro, sem se preocupar com mais nada. Quando nenhuma destas situações se verifica, temos que lidar com a tensão e as preocupações que são suscitadas pelas experiências passadas e pelo futuro que a nossa cabeça perspectiva, o que será prejudicial para uma prestação de topo. De igual modo, um grande relaxamento também fará com que o nosso próprio inconsciente deambule por outros caminhos que não aqueles que dizem respeito ao “simples” acto de correr.

Este último parágrafo resume a minha mais recente convicção sobre este assunto, que ganhou ênfase depois de ler o ensaio”No Momento: Música e Amnésia”, de Oliver Sacks, presente no livro “Musicofilia” e onde este diz o seguinte sobre a música:

Quando “recordamos” uma melodia, esta soa na nossa mente; torna-se de novo viva. (…) Lembramos um som de cada vez, e cada som enche por inteiro a nossa consciência, embora simultaneamente se relacione com o todo. É como quando andamos, ou corremos, ou nadamos (…)

 

Ao ler estas palavras, reencontrei-me com a ideia, frequentemente esquecida, de que correr, por si só, é prazeroso, por mais vezes que se repita esta acção. Simplesmente, a nossa mente e estado de espírito é que “pintam” cada corrida de maneira diferente. Este texto de Oliver Sacks é sobre um paciente cuja memória dura apenas cerca de 7 segundos, excepto quando se trata de música. Depois da citação em cima, Sacks acrescenta ainda:

Na realidade, se pensarmos em cada nota ou em cada passo demasiado conscientemente, poderemos perder o fio, o motor da melodia.

 

Como indiciei em cima, parece-me que é isto que acontece connosco, atletas. No nosso caso, as notas musicais traduzem-se na tensão desnecessária que exercemos no corpo, a cada passo, a fim de corrermos mais rápido. Tensão que também se verifica no cerrar de dentes, no nervosismo, no entrar em pânico quando algo foge um milímetro que seja do planeado. E, no entanto, o que é o nosso plano para cada corrida, senão um termo de comparação com algo que previmos ou definimos antes e que está gravado na nossa memória?

Mas o mais interessante, na minha perspectiva, só vem agora. Ao mesmo tempo que Sacks diz isto, ele estabelece uma ponte com o musicólogo Victor Zuckerkandl, que tem expressões ainda mais interessantes sobre este assunto. Ora vejamos:

O tempo é sempre novo; é possível que não possa deixar de ser sempre novo. Escutada como uma sucessão de factos acústicos, a música tornar-se-á dentro em breve aborrecida; escutada como acontecimento que se desenrola no tempo, nunca poderá aborrecer-nos. O paradoxo manifesta-se sob a sua forma mais evidente na acção de um intérprete, que atinge o ponto mais elevado da sua arte quando consegue executar uma obra que lhe é intimamente familiar, como se se tratasse de uma criação do momento presente.

 

E não é isto que acontece connosco? Quando encaramos os treinos como uma mera sucessão da rotina diária, eles tornam-se aborrecidos. E as próprias provas, de algum modo, quando repetidas todas as semanas, também enveredam pelo mesmo caminho. Assim, a grande dificuldade está aqui: sermos capazes de colocar de lado o nosso leque de prestações acumuladas (experiências) e interpretar a corrida do presente como se se tratasse de uma nova criação. A partir daí, tudo pode acontecer.

Infelizmente, é mais fácil falar do que executar tudo isto. Até porque, a certa altura, entra na equação uma outra variável de grande importância: o nosso esforço e sofrimento, como resultado de desafiarmos os nossos limites. A cada passo, o corpo é quem mais se queixa, mas o cérebro também se mostra incapaz de raciocinar. Neste assunto, muito melhor do que as minhas palavras, serão as de Don Gately, personagem relevante no livro “A Piada Infinita”, de David Foster Wallace. Gately, que sempre teve problemas com drogas, parece sintetizar esta dificuldade no pensamento que teve num hospital, quando lá internado depois de um violento ataque:

… sim, era capaz, era capaz desde que continuasse a querer fazer isso (…) Podia fazer o mesmo em relação às dores destras: aguentar. Não havia um só instante que não fosse suportável. Ali estava agora mesmo um segundo: suportou-o. O que ele não conseguia mesmo lidar era com a ideia de todos os instantes em fila e a estenderem-se até ao horizonte (…) É demasiado para estar a pensar nisso. Para aguentar ali. Mas, para já, nada disso é real. O que é real é o tubo, a noxemia e as dores. E em relação a isso podia fazer exactamente o mesmo que ao velho vício, Podia simplesmente agachar-se no espaço entre as batidas do coração e fazer de cada uma um muro e viver lá dentro. Sem deixar que a cabeça espreitasse por cima. O que era insuportável é o que a cabeça podia pensar de tudo aquilo. O que a cabeça lhe podia comunicar, quando espreitasse por cima e em frente e comunicasse. Mas ele podia optar por não a ouvir (…) Ainda não tinha percebido realmente isso, que não era só uma questão de se libertar da necessidade da droga: tudo o que era insuportável estava na cabeça dele, era o facto de a cabeça não aguentar viver no presente e se pôr a pular o muro, a fazer reconhecimentos e a voltar a seguir com notícias insuportáveis em que depois, sem perceber bem porquê, a pessoa acreditava.

 

No caso do atletismo, esta pode ser uma cena no terço final de uma prova, onde o esforço já é muito grande. Como a cabeça que espreita por cima do muro, nós olhamos para o nosso relógio. O ritmo que ele marcar é o responsável por transmitir pânico ou tranquilidade à nossa cabeça, assim como por alterar a nossa sensação de esforço.

Concluindo, a capacidade de manter as experiências do passado e as perspectivas do futuro ao nível do inconsciente parece-me ser determinante para apreciarmos verdadeiramente cada corrida. Quero dizer: para o corpo fluir para as suas melhores prestações, liberto de quaisquer condicionante; para que, como o músico, este possa correr provas (“tocar melodias”) que já conhece como se fosse a primeira vez.

Mas como colocar isto em práctica? Por agora, creio que temos apenas dois caminhos. O primeiro é o de desfrutar. Apenas possível quando as provas são separadas por largos dias, ou quando se trata de um regresso, muito tempo depois. Neste último caso, o desfrutar é ainda mais alavancado pela nostalgia. O segundo, é quando conseguimos despertar a atenção da mente para tudo o que não seja a nossa memória da experiência e os cálculos que esta faz para o nosso presente e futuro. Para este segundo trilho, estratégias como não olhar para o relógio durante a prova, encontrar novos “rivais” na estrada que despertem a nossa curiosidade, correr por estradas desconhecidas, ou, ironicamente, por via da música – cujo ritmo certo é capaz de nos dessintonizar da experiência acumulada, do esforço, e focar o presente à boleia de cada melodia que nos invade. Ou será que, hoje em dia, é apenas por acaso que se vêem tantos corredores com auscultadores nos ouvidos?

 

Bibliografia

Sacks, Oliver (2008). Musicofilia – Histórias sobre a Música e o Cérebro. Relógio D’Àgua Editores; p. 212
Citação original de Victor Zuckerkandl presente em: Zuckerkandl, Victor (1956). Sound and Symbol: Music and the External World. Princeton, NJ: Princeton University Press

Foster Wallace, David (2012). A Piada Infinita. Quetzal Editores. p. 962-963

 

Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.

Imagem de Capa: Fabricio Macedo FGMsp do Pixabay

 

Ligado ao desporto desde pequeno, deixei definitivamente o futebol em 2016 para me dedicar afincadamente ao atletismo. Desde aí que muita coisa mudou na minha vida, a qual não imagino sem o desporto.

O Vida de Maratonista nasce então da minha paixão pelo atletismo, com contribuição especial da minha Licenciatura em Engenharia Informática, que me permitiu criar a solo este espaço de aventura e opinião, e torná-lo agradável a quem o visita.

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