Se é sabido que não se deve julgar um livro pela sua capa, o mesmo…
Maratona de Londres 2020: Nem tudo está perdido!
A obsessão com os recordes do mundo e de percurso, por parte das organizações, em prol da verdadeira competição entre atletas, tem reduzido muito o meu interesse pelas grandes provas de atletismo. Como tal, hoje, embora com conhecimento, não tinha programado acompanhar a Maratona de Londres 2020. Uma decisão que ganhou muita força depois de confirmada a desistência de Kenenisa Bekele. Quando soube dessa notícia, logo pensei que na prova masculina iria estar um homem na frente, a correr em solitário ou com lebres, ao longo de quase todo o percurso. Contudo, não foi assim que se desenrolou a história da Maratona de Londres 2020. Sem desejar mal algum a Eliud Kipchoge – aliás, ainda lhe ganhei mais admiração (ver texto mais à frente) – ainda bem que tudo aconteceu ao contrário do programado.
Já depois do meu treino matinal (porque primeiro a estrada e só depois a cadeira ou o sofá), e por fruto de um acaso, acabei por espreitar a corrida quando esta já estava para lá da hora e meia de prova no sector masculino. Quando vi tanta gente na frente, estranhei o suficiente para me manter ligado ao evento. Ora, isto foi tempo suficiente para presenciar alguns pormenores importantes, e outros depois, que deixaram o meu eu desportivo mais alegre e esperançoso em relação ao futuro. Talvez não tenha sido o único, e é já por aí que começo.
Eliud Kipchoge afinal não é imbatível
Por mais que nos habituemos à ideia de que alguém é imbatível ou de ferro, seja no desporto, no trabalho, ou noutra vertente da nossa vida, a verdade é que tal nunca será um acontecimento duradouro. Não passa disso mesmo: de um hábito, que em algum momento será quebrado, por mais que os dados estatísticos digam o contrário. Hoje, Eliud Kipchoge teve apenas aquilo que faz parte da carreira de qualquer atleta: um dia menos bom, por quaisquer que sejam as razões que o tenham originado. Faz parte do dia a dia de um desportista, como da vida fazem parte momentos difíceis. Aliás, arrisco dizer que se um atleta estiver em perfeita forma ao longo de toda a sua carreira, então algo de muito anormal se estará a passar. Continuando, penso que este resultado do “Rei da Maratona” se vai transformar numa injecção de esperança para os seus companheiros de profissão. A partir de agora, quem sabe eles não sejam mais ousados quando voltarem a estar em prova com Kipchoge, ou seja, sem receio de testarem as suas capacidades. O adepto e a prova onde isso acontecer só vai ter a ganhar com isso. Detentor de um currículo extraordinário na distância mítica, Kipchoge pode e vai provavelmente voltar a ganhar. No entanto, o simples facto de ao seu lado se apresentarem atletas que acreditam ser possível superá-lo muda por completo o cenário de corrida.
Eliud Kipchoge foi destronado, mas não caiu!
Dando seguimento à menção de “dia mau”, ou “menos bom”, para Eliud Kipchoge, creio que há algo de muito valor a salientar naquilo que é um verdadeiro perfil de campeão deste atleta. Pelo menos aos meus olhos. Quando as coisas não estão a correr bem a atletas de elite numa prova, seja em termos cronométricos ou classificativos, o mais normal é os atletas desistirem da prova a certa altura. Quanto maior a distância da prova, com mais frequência isto acontece, num cenário que se estende das provas de panorama internacional às menos profissionais. Em todos os lados isto acontece, e quem anda na estrada sabe que assim o é. Hoje, certamente que Kipchoge não tinha na sua cabeça correr na casa das 2 horas e 6 minutos. Porém, não foi por isso que desistiu ou encostou. O queniano completou a distância apesar das dificuldades que o condicionaram e, pessoalmente, acho que isso diz muito da sua personalidade.
Sara Hall “foi de mota” para o segundo lugar
Se os atletas masculinos de classe mundial podem hoje estar mais esperançados em ser possível bater Eliud Kipchoge, a esperança que ganhou forma nesta Maratona de Londres 2020, vai muito para além disso. Basta olhar para o final de ambas as provas. Começo pela feminina, onde Sara Hall, com uma ponta final soberba, ultrapassou a Campeã do Mundo da Maratona, Ruth Chepngetich (Quénia), deixando-a completamente apeada. Afinal, é possível bater os atletas africanos na distância da maratona. Afinal, temos aqui mais uma evidência em como a idade por vezes vale muito pouco. A norte-americana Sara Hall tem 37 anos e foi segunda classificada nesta Maratona de Londres 2020.
O pequeno Shura Kitata foi mais rápido que o gigante Vincent Kipchumba
Da idade para a pequenez. No sprint final masculino, é notória a diferença de altura e comprimento de pernas entre Shura Kitata (Etiópia) e Vincent Kipchumba (Quénia). Ao ser também de pequena estatura, eu senti-me na pele do vencedor da prova, já que num momento que exige maior velocidade, como é o caso do sprint final, e após desgaste de tantos quilómetros, o atleta mais alto terá alguma vantagem. Não será sempre assim, pois outras variáveis entram na equação, mas, por norma, o duelo estará a favor do atleta de maior estatura. Quando vi Shura Kitata marcar a diferença, senti mais uma onda de esperança a invadir-me, desta vez abrangente a todos os pequeninos.
A terminar, creio que esta foi uma edição da Maratona de Londres que extravasou os planos dos seus responsáveis, resta saber se por bons ou maus motivos na sua óptica. Da minha parte, não podia ter ficado mais contente com este lote de peripécias que acredito serem benéficos para o futuro do atletismo de estrada competitivo. Boas corridas!
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
Créditos Imagem de Capa: Marco Verch no Flickr
Belo texto!
Bela vitória numa maratona para quem tem 24 anos!
Sem favoritismos, assim é que devia ser sempre!
Obrigado Ivo 🙂
Concordo, suspiro por mais momentos como este no futuro do atletismo para que prevaleça o verdadeiro espectáculo e a competição.
Bom texto e concordo completamente. Tal como tu, ainda vi o final da maratona masculina depois do treino matinal, também fiquei “contente ” com a vitória de um outro atleta que não o kipchoge. O que mais me surpreendeu no vencedor foi a péssima (ou não) técnica de corrida. Só prova q a capacidade física ainda se sobrepõe à “estética” da corrida. Abraço e bons treinos.
Olá Tiago 🙂
Eu ainda não consegui explorar tão a fundo quanto queria essa questão, mas é de facto muito curioso. A técnica é super importante, especialmente quanto maior o desgaste (estávamos no final da maratona) e, além disso, pelo que descobri, depois do desgaste supostamente um atleta maior tem alguma vantagem, mas o Shura Kitata venceu. Incrível, e ainda bem 🙂
Bons treinos, abraço!