Como alguns de vocês devem estar recordados, em Setembro de 2019, iniciei aqui uma rubrica…
A importância da memória muscular – Sim, ela existe!
Lesões. Compromissos inadiáveis. Situações de última hora. Condições meteorológicas. Eis algumas das razões que por vezes nos obrigam a cancelar os treinos programados. Quanto mais prolongados forem estes casos, maior a tendência de entrarmos em paranóia por causa da perda de forma física.
Todavia, como já devem ter constatado em exemplos práticos à vossa volta, o “pânico” que nos invade por causa destas situações nem sempre tem fundamento. Basta pensarem em amigos de treino que estiveram parados durante algum tempo. Quando regressaram, eles precisaram de tanto tempo assim para voltarem à boa forma? Não, pois não? Nem mesmo aqueles cuja ausência tenha sido superior a um ano.
Antes de continuar, de referir que este artigo não visa, de maneira alguma, desincentivar quem quer que seja a treinar. Longe disso, visa apenas ajudar a perceber que quando somos forçados a parar, nem tudo o que fizemos antes foi perdido. Muito graças à “memória muscular”, também conhecida por “memória do movimento”, que o nosso corpo fantástico possui.
O que é a Memória Muscular?
A memória muscular é um tipo de movimento a que os nossos músculos se acostumam após algum tempo. Desde que nascemos, vários são os movimentos que aprendemos a executar. Se inicialmente estes são difíceis de realizar, mais tarde não depositamos sobre eles qualquer foco para os desempenhar. Recordemos quando aprendemos a caminhar ou a andar de bicicleta. “Tarefas” que agora nem temos que nos focar para as desempenhar.
Do ponto de vista clínico, o que realmente acontece durante este processo é a construção de caminhos neurológicos entre o cérebro e os músculos, que nos concedem a dita “memória muscular”.
Por outras palavras, o cérebro aprende a reconhecer os sinais que correspondem ao movimento em causa. Assim, e consoante sua vontade, o cérebro coordena os músculos a executaram o movimento com a precisão exigida para as necessidades daquele momento.
Se não fosse este tipo de memória, o nosso corpo não teria a capacidade de se habituar a estes movimentos e os mesmos não se tornariam automáticos.
As três fases do processo de aprendizagem
Já de seguida, os mais curiosos podem saber um pouco mais sobre as três fases que constituem este processo de aprendizagem e memorização dos movimentos.
Fase Cognitiva
Quando somos apresentados à tarefa motora que vamos começar a executar dali em diante. Corresponde a uma introdução inicial ao novo movimento. Nesta fase, a grande preocupação não é executar o movimento, mas sim percebê-lo. O foco está em entender como o vamos fazer. De que forma? A ver, a refletir, a analisar o movimento em causa.
Fase Associativa
Aqui sim, começamos a praticar o movimento. O aprendiz pode ainda não ser capaz de executar a nova tarefa motora na perfeição, mas já sabe como a tem que executar.
Fase Autónoma
Execução da tarefa motora de forma inconsciente. Ou seja, sem ser necessário o foco na mesma para a processar. O movimento é feito de forma fluída e instintiva.
Quem corre tem um exemplo muito prático dos bons resultados desta última fase. Refiro-me àquelas alturas do treino em que, sem qualquer tipo de esforço, damos por nós a um ritmo alto e confortável, postura de corrida perfeita, respiração estável e movimentos sincronizados. Tudo parece automático e perfeitamente sincronizado. Por mim, até chamo a este estado “profunda meditação”, tal o nível de ligação que atingimos com o nosso corpo de forma tão relaxada e apaziguadora.
A Memória Muscular no Atletismo
Recordemos aquelas alturas do treino em que, sem qualquer tipo de esforço, damos por nós a um ritmo alto e confortável, postura de corrida perfeita, respiração estável e movimentos sincronizados. Tudo parece automático e perfeitamente sincronizado. Por mim, até chamo a este estado “profunda meditação”, tal o nível de ligação que atingimos com o nosso corpo de forma tão relaxada e apaziguadora.
Este é um exemplo muito prático dos bons resultados que a memória muscular proporciona. Sinal que o nosso corpo não esqueceu os movimentos de outrora, a técnica, as sensações,a forma mais eficiente de corrermos. E onde é que isto está tudo armazenado? Nos caminhos neurológicos que antes construímos e que só se perdem em circunstâncias especiais, como vamos ver mais à frente neste artigo. Antes disso, um pequeno parêntesis.
Nem tudo se resume à Memória do Movimento
Um regresso em grande não é mérito exclusivo da memória muscular. Os próprios músculos são modificados durante o treino, de maneira a que seja mais fácil recuperarem a forma física em caso da mesma ser perdida.
Durante o exercício, os nossos músculos são fortalecidos. Basicamente, as células deste tecido ganham ainda mais núcleos. Por outro lado, com a ausência de exercício a longo termo, os músculos podem perder a força e o tamanho de outros tempos. Todavia, ainda que as células do tecido muscular sofram uma diminuição do seu tamanho, os núcleos mantêm-se por lá. Mais tarde, num eventual regresso aos treinos, é a permanência desses núcleos de outros tempos que estimulam a síntese proteica e facilitam uma nova adaptação do músculo ao exercício físico.
Mas há mais! Existe ainda a parte das mitocôndrias. Um termo que não deve ser desconhecido a quem anda pelo mundo do desporto e costuma ler artigos de carácter mais científico. Quem sabe daqui a uns tempos fale sobre elas. Continuando no que estava a dizer, os genes que regulam o crescimento das mitocôndrias estão também localizados nos núcleos das células. Desta forma, todos os núcleos que mantiveram residência nos músculos, após a perda da condição física do atleta, estarão aptos a responder rapidamente às exigências dos treinos quando o atleta voltar ao exercício físico.
Cuidado com os maus hábitos!
Agora de volta à memória muscular. A grande protagonista deste artigo, e a qual merece grande atenção nos aspetos que se seguem.
Quanto mais repetirmos um movimento, maior a probabilidade de o executarmos como pretendido. A prática fará a perfeição. Mas cuidado! Uma vez que este se torna um processo inconsciente a longo prazo, denominado “facilidade neuromuscular”, devemos mesmo certificar-nos que o executamos corretamente. Caso contrário, estaremos a executar movimentos prejudiciais ao nosso corpo que a longo prazo podem ter consequências graves.
O outro caso, a par dos maus hábitos a que habituamos o nosso corpo, diz respeito às lesões graves e repetitivas que interferem com a nossa parte motora. Nestas situações, o corpo tem tendência a desenvolver padrões de movimento que visam compensar as condições “deficientes” de alguns dos nossos movimentos. Nos exemplos mais críticos, que exigem a reaprendizagem de movimentos básicos, como o caminhar de forma correta, a reabilitação pode ser um processo muito difícil e demorado.
Aqui entra em cena o que podemos chamar de “amnésia da memória sensorial motora”, e que se sobrepõe à memória muscular. Faz sentido, pois quem manda é o cérebro, não os músculos.
Amnésia da Memória Sensorial Motora
Segundo Thomas Hanna, a amnésia da memória sensorial motora refere-se à condição em que os músculos adquirem um estado de tensão com regularidade. Seja por motivo de lesão (ligamentos ou tendões), choques físicos (quedas), uso repetitivo (sobrecarga do treino) ou stress contínuo.
A longo prazo, estas e outras condições impedem os músculos de relaxar na totalidade e, consequentemente, de se moverem livremente. Por outras palavras, é mais um automatismo (neste caso, prejudicial) que se cria entre o cérebro e os músculos e que fica muito difícil de contrariar. Afinal de contas, não só os músculos envolvidos no movimento saem condicionados (ficam tensos), como também todos os que fazem parte da mesma cadeia cinética.
Como recuperar das lesões e maus hábitos que condicionam o movimento?
Com esforço consciente! Foco total no exercício! Assim como aconteceu quando aprendemos a andar, também agora é necessária a total concentração num novo movimento que nos permita corrigir o que estamos a fazer de errado. Um processo que é preciso repetir até ser estabelecido o novo padrão de memória muscular (o correto e benéfico para a saúde). Basicamente, vamos fazer o cérebro reaprender o movimento desejado, para assim poder libertar os problemas associados ao movimento “deficiente”.
A reter sobre a Memória Muscular
Para terminar, um resumo da parte técnica mais sensível de toda esta investigação.
Quando as ações de um novo movimento forem memorizadas pelo nosso cérebro, o passo seguinte é treinar os nossos músculos para agirem de uma forma rápida e fluída (Mack, 2012). Aqui os exercícios de força têm um papel muito importante. Eles estimulam as sinapses nos músculos que, por seu lado, aumentam a velocidade a que viajam os impulsos entre cérebro e músculos, por via do sistema nervoso. Este é um ponto chave para quem visa melhores desempenhos, pois reduz o tempo de intervalo entre a decisão do cérebro em executar um movimento e o músculo começar a mover-se nesse sentido.
Já todo e qualquer movimento incorrecto na nossa técnica de corrida vai se tornar um mau hábito a longo prazo. Isto vai exigir, principalmente de quem já corre há muito tempo, um esforço enorme para tentar corrigir o problema. Este processo pode levar apenas alguns dias a ficar concluído, como pode demorar meses ou anos.
Mas nem tudo é mau! Ainda que seja necessária uma total concentração para alterarmos os padrões atuais da nossa memória muscular, desviar alguma da nossa atenção para a parte biomecânica pode ser o suficiente para interromper os padrões errados que desenvolvemos anteriormente.
Notem que são coisas distintas. Se eu tiver um mau hábito durante a corrida, ao iniciar um treino sem pensar nisso vou estar a dar continuidade a esse mau hábito. Se tiver consciência desse mau hábito e iniciar um treino a tentar contrariá-lo, neste caso não estarei a desenvolver um novo padrão, mas apenas focado em contrariar os movimentos do mau hábito que tenho para não piorar a situação.
Conclusão
Atletas! A partir de agora, já não existe desculpa ou desmotivação possível para não regressarem aos treinos. Nem para fazerem um drama quando, por motivos de força maior, tiverem que deixar de treinar por uns dias. REgressar aos treinos não significa começar do zero! Como aqui vimos, para além das boas recordações do passado, também o corpo se encarrega de armazenar sensações, movimentos, e componentes fundamentais para um regresso em grande estilo. A memória muscular existe!
Referências
DNA SPORTS PERFORMANCE – “Muscle Memory: A Coaches Perspective“. Disponível em http://www.dna-sports-performance.com/muscle-memory-a-coaches-perspective/
RUNNER’S WORLD – “Muscle Memory and Endurance“. Disponível em https://www.runnersworld.com/sweat-science/muscle-memory-and-endurance
ESSENTIAL SOMATICS – “Somatics And The Professional Athlete“. Disponível em http://essentialsomatics.com/hanna-somatics-articles-case-studies/somatics-professional-athletes
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