Com 2024 na sua recta final, já não há volta a dar: a loucura e…
Efeitos secundários de correr em negative split
Há uns tempos atrás, analisei neste espaço as minhas prestações em provas de 10K e meia-maratona, sobretudo com o intuito de perceber com que frequência corria em negative split (uma segunda metade de prova mais rápida do que a primeira), e com que regularidade isso resultava num recorde pessoal na distância. Duas análises que podem ser consultadas nas hiperligações seguintes:
- Correr 10 quilómetros em negative split? Chumbei no teste!
- Deves correr a meia-maratona em negative split? Eu devo!
Hoje, regresso a este tema com o intuito de o aprofundar e, consequentemente, salientar o que esta estratégia oferece, além das boas probabilidades de recorde pessoal. A resposta parece simples: no negavite split está implícito um menor desgaste físico e mental durante uma prova. Ou seja, um menor sofrimento do sistema mente-corpo. Do lado oposto, quando o split é posivito, costuma verificar-se um maior desgaste:
- Físico: porque correr a primeira parte demasiado rápido implica, pouco depois, entrar em défice da energia na segunda metade e, portanto, ir a “penar” durante um troço da prova. Este último caso, quando a falta de energia nos atinge ainda bastante longe da meta, pode mesmo traduzir-se na desistência da corrida. E tudo isto em condições ditas “normais”. Se a corrida for feita sob condições climatéricas adversas, ou em trajectos com várias subidas e descidas, tudo isto se agrava.
- Mental: precisamente porque passamos mais tempo a tentar “empurrar o corpo” com a nossa força psicológica, uma vez que a máquina já vai em subrrendimento. Uma coisa é ter uma conversa agradável com a nossa mente, à medida que os quilómetros passam. Outra, completamente diferente, é ir em discussão com ela para que o corpo não deixe de trabalhar.
Em suma, tudo depende da gestão que se faz da energia. Um pouco à imagem do que acontece em cada dia da nossa vida. Ora vejamos: em dois dias diferentes, podemos chegar ao final de cada um com o mesmo valor acumulado de energia despendida. Contudo, se num deles gastarmos toda essa energia logo pela manhã, vamos estar pouco predispostos, e com capacidade reduzida, a fazer o que quer que seja durante o resto do dia. Inclusive, mais susceptíveis de oferecer “mau humor” a quem interagir connosco. Por seu lado, se esses gastos forem bem distribuídos pelas 24h horas do dia, a probabilidade de fazer mais coisas com eficiência e competência será maior, e o estado de espírito estará menos sujeito ao pessimismo ou a mudanças de humor indesejadas.
A fim de dar um outro exemplo, que me parece igualmente apropriado, troco agora a energia pelo dinheiro. Imaginemos que temos X valor disponível para gastar até ao final do mês. Se boa parte desse montante for gasto logo no início, nas últimas semanas vamos andar mais ansiosos e preocupados, pois ficamos sempre na dúvida se o dinheiro vai chegar para cobrir todas as despesas, não descorando o aparecimento de um investimento forçado que não estava previsto. Outra, totalmente diferente, é só ter de gastar boa parte do dinheiro nos últimos dias do mês. Neste caso, serão poucos dias em que andaremos ansiosos até que as nossas finanças sejam reforçadas. O desgaste provocado pela ansiedade e stress não é, de todo, o mesmo, nas duas situações.
Mas claro que tudo depende da importância de cada tarefa, pelo que o tema deixa de ser linear quando se assume uma visão mais holística. Por exemplo, e de volta ao desporto, competir de manhã é óptimo porque ainda não estamos desgastados com outras tarefas, o que já não acontece se a prova fosse à tarde. Por outro lado, se houverem tarefas muito exigentes, ou pouco atractivas, programadas para o resto do dia, podemos passar um mau bocado, se em prova deixarmos, como se costuma dizer, o que temos e até o que não temos. Se essas tarefas forem secundárias, não haverá grande problema. Todavia, se forem relevantes para a nossa vida, a estratégia já tem de ser pensada com outro cuidado.
De volta ao negative split, e ainda numa viagem por diferentes pontos de vista, de alguma forma ele pode ser visto como o “limitador”, ou mesmo o “guarda-vigilante”, do nosso entusiasmo. Certamente que vamos continuar a gastar toda a energia disponível em prova, quando estamos a competir pelo nosso melhor. No entanto, quando este vigilante entra em acção, ele garante que não gastamos essa energia de uma maneira gulosa, consumista, ou irracional. Como a criança que vai com os pais a uma romaria e eles prometem-lhe um brinquedo. Ela pede logo o primeiro que vê e lhe interessa. O problema é que, pouco depois vê, outro ainda mais atraente. Resultado? Rapidamente se arrepende de ter pedido o primeiro.
Certamente que as desvantagens também existem. Ainda na perspectiva da romaria, há sempre o risco de, enquanto a criança percorre todos os vendedores, uma outra pode levar o produto que, terminada a ronda, ela decide comprar. Porém, isso parece-me menos provável do que cair logo na primeira tentação e depois vir embora arrependida porque, posteriormente, viu um brinquedo mais apetecível. De igual modo, numa corrida, pode ser importante apanhar um comboio na primeira metade, que nos pode fazer conservar mais energia do que se formos a solo e exclusivamente focados no negative split. Aqui, as questões que se colocam são as seguintes: em quantos desses comboios acabamos por ficar completamente apeados mais à frente? Temos a coragem necessária para largarmos o comboio quando a nossa intuição assim nos indicar?
Posto tudo isto, ganha forma (na minha cabeça) a seguinte conclusão. Não há estratégias perfeitas para todas as situações, mas, regra geral, o negative split pode ser apelidado de “estratégia da sensatez”ou da “recompensa adiada”. Quero dizer, será mais propício a melhores resultados. E não descartando que numa prova em negative split há risco de sobrar alguma energia no final, essa probabilidade parece-me muito mais pequena do que chegar à meta em défice e com o bónus indesejável de mais tempo perdido.
Assim termino este texto, que escrevi mais a pensar em mim do que nos leitores. Que me desculpem a prioridade para a minha pessoa, mas esta é daquelas coisas que, nas próximas competições com metades equivalentes, eu quero transformar o “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço” em “comprovar pelo exemplo”.
Boas corridas!
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
Imagem de Capa: pasja1000 do Pixabay
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