Não consigo precisar há quanto tempo (deve andar perto de dois anos) passei a consultar…
Corrida de S. João 2024: A Lata das Moedas
16 de Junho de 2024. Falta pouco menos de uma hora para arrancar mais uma edição da Corrida de S. João, em Vila Nova de Gaia, quando, durante a toma do meu precioso café pré-competição, a conversa com os meus amigos de mesa, por algum motivo que agora já não tenho memória, foi desaguar nas latas que algumas pessoas têm em casa, onde vão acumulando moedas, sobretudo de 1 e 2 cêntimos. Um assunto que tinha tudo para ficar ao abandono junto das chávenas vazias que deixámos na esplanada, ainda para mais se for tida em conta a concentração e nervosismo naturais antes da prova, que por norma erradicam as memórias mais comezinhas dos minutos anteriores. Porém, e já depois de terminada a minha prova e aliviada a tensão, constato que não foi bem o que se passou com este assunto da lata das moedas mais pequenas. De alguma forma, o tema conseguiu um dorsal VIP de acesso ao meu subconsciente, ali se desenvolveu nas últimas horas, para agora dar de si.
Vejamos. Para mim, o atletismo é por esta altura um jogo de paciência. Já lá vão os anos iniciais em que dava saltos evolutivos significativos quase todos os meses. Ora, essa paciência de alguma forma corresponde a trabalhar diariamente para poder meter uma ou duas moedas pequeninas na já referida lata, alimentando a esperança de tirar uns segundos às minhas melhores marcas pessoais. Felizmente, isso tem acontecido, embora à primeira vista tais resultados não sejam visíveis, pois as conquistas, encaradas de forma isolada, são por vezes tão pequenas quanto as moedas. Só ao olhar para um plano mais alargado (exemplo: um ano completo de competição) e somar todas as pequenas conquistas é que dou conta da solidez alcançada e dos verdadeiros ganhos (de facto, o mesmo se verifica com a lata se esta não for transparente, pois só ao pegar nela se percebe o quão mais pesada ela está). De volta aos ganhos marginais, eu posso até ter as expectativas demasiado moderadas, mas acredito que realmente, na grande maioria do tempo, os incrementos não podiam ser de outra forma, tanto no meu caso como na maioria dos atletas que conheço (e passo então a falar mais no plural), por aquilo que são as nossas vidas. Porque a lata não deixa de aceitar (e receber) moedas de 20 ou 50 cêntimos, volta e meia até de 1 ou 2 euros, quando conseguimos juntar um “salto” físico com o seu ascendente psicológico. Mas a inserção deste tipo de moedas na lata é menos frequente, pois nem sempre nos podemos dar a esse luxo. Afinal de contas, a vida é também preenchida por outras obrigações, responsabilidades e necessidades (e eu confesso que ainda meto várias de 20 e 50 cêntimos no atletismo), onde essas moedas maiores nos dão imenso jeito. Só as de 1 e 2 cêntimos é que nem para as máquinas de café …
Todavia, há ainda uma outra perspectiva que deve ser considerada. As moedas, por mais pequenas que sejam, têm peso que conseguimos sentir. Ou seja, no acto de inserção das moedas na lata, ainda que ligeiramente, sentimos o peso do dinheiro. Há relevo, há contacto nesta acção de pegar nas moedas e colocá-las no recipiente, e isso, em termos desportivos, corresponde a dizer que, treino a treino, há experiências que nos ficam gravadas e que tantas vezes nos são úteis na competição, seja para nos sentirmos mais fortes, seja para não quebrarmos psicologicamente e suportar um esforço que, noutras condições, se tornaria insuportável. Ou até outro tipo de vivências aparentemente banais que o tempo pode vir a atribuir-lhes mais importância. Por outras palavras, o acto de acrescentar moedas à lata é um processo físico robusto. Não é teórico nem virtual. Além disso, à medida que a lata vai ganhando peso, aquilo torna-se trabalhoso tirar todas as moedas para fora e contá-las, seja para as gastar em algum novo investimento, seja para pagar alguma dívida. Portanto, essa é uma tarefa com atrito e com demora no seu processo de realização, o que faz com que seja mais difícil vacilarmos ou cedermos a um impulso do momento quando já temos o hábito de seguir por esta via. Esta robustez pode ser encarada da perspectiva do desempenho, mas também no que diz respeito ao nosso envolvimento na comunidade. Seja antes ou depois da prova, ou até em pleno momento competitivo, a probabilidade é grande de hoje conversar com alguém novo, com mais duas ou três no próximo desafio, e assim sucessivamente. Tendo em conta que são contactos físicos, ainda que possam ser superficiais numa primeira fase, eles têm mais pernas para andar do que os virtuais, onde tantas vezes nem se conhece quem está do outro lado do ecrã. Caso para dizer que esta lata é também social.
Chegado a este ponto em que o virtual “veio à baila”, é com a comparação entra a lata das moedas e uma opção mais moderna e tecnológica, como uma possível “conta bancária de poupança” (ou até de investimentos), que se torna mais fácil compreender tudo o que disse anteriormente e que me parece encaixar melhor num desporto como o atletismo, quando o que se procura é a evolução ou o simples desfrute das provas. De recordar que estamos na era do wireless e do contactless. Hoje em dia, grande parte dos equipamentos já nem requerem um contacto físico entre si, como a inserção de um cartão bancário num TPA. Quer isto dizer que os atritos para se gastar, por via de um forte impulso, aquilo que se acumulou durante muito tempo numa “conta poupança” são inexistentes ou andam muito perto disso. De um momento para o outro, lá se vai o crédito, por via de um simples pagamento à distância. A tarefa árdua de contar todas as moedas da lata não existe aqui. Não há um trabalho intermédio que dê tempo para esfriar as ideias ou motivações, o que, de volta à corrida, erradica qualquer tempo de ponderação que poderia existir antes de um possível “salto de fé” para abordagens de treino tentadoras que prometem resultados rápidos. Claro que, como em tudo, há excepções, e certamente que alguns investimentos deste tipo podem ter algum retorno, mas acredito que muito poucos. Tornando-me um pouco repetitivo, acredito que é no jogo lento e paciente de reunir moedinhas que surge o tempo para pensar (e sobretudo compreender) o que andamos a fazer no treino e nas provas, o que normalmente tem como consequência melhores decisões futuras. O virtual, como o dinheiro na conta, é demasiado volátil e o atletismo, a meu ver, não é um desporto “do momento”, mas de trabalho a longo prazo. Abrindo espaço para um rápido desabafo: talvez por isso goste tanto dele. A corrida de longa distância tem estabilidade, e sobretudo a maratona não é vertiginosa e dá-me a sensação de ir a bom ritmo, tendo inclusive (por vezes!) tempo para apreciar a paisagem e o apoio das pessoas. Gostaria que a minha vida em geral fosse mais assim.
Em jeito de conclusão, e porque esta história requer um desfecho, importa perguntar: o que vai acontecer à lata das moedas? Sem dúvida que essa é uma boa questão, para a qual a resposta não me parece ser fixa. No meu caso, ainda acredito que ela me vai permitir comprar passagens para aventuras importantes, devidamente ajustadas à minha evolução e envelhecimento. No entanto, se tal não se verificar, está sempre à espreita a hipótese de a entregar a alguém, fazendo dela um uso mais educativo com o que vou aprendendo e experienciando por estas bandas.
Boas Corridas!
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
Foto: Runporto
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