Se é sabido que não se deve julgar um livro pela sua capa, o mesmo…
As Lágrimas da Maratona
Talvez faça confusão a muita gente o porquê de tantos atletas chorarem (ou forçarem-se a conter as lágrimas, se ainda restarem forças) quando cortam a linha de meta de uma maratona. Espantados com o sucedido, os incrédulos lançam a questão para o ar e, não raro, a explicação mais frequente aponta para a longevidade da prova. Mas será mesmo esse o principal motivo?
Cada um tem a sua opinião. Quanto a mim, permitam-me discordar da resposta anterior. A meu ver, o que confere tanta emoção a este desafio é o longo caminho percorrido. Os meses árduos de preparação para a prova, os quais implicam: conciliar o plano de treino com “tudo o resto” que preenche a nossa vida; suportar as condições meteorológicas (como treinar no inverno para as maratonas da primavera, ou no pico do calor do verão para as do outono); uma maior carga de actividade física; entre outras coisas.
E é sobretudo por isto, e não por motivos competitivos (espanto-me a mim mesmo ao dizer isto) que nesta altura sinto falta de voltar a correr uma maratona. Pelo projecto que a envolve. Pelo seu longo caminho. Estou tão acostumado a provas de menor distância que, com mais ou menos dificuldade, muitas vezes já defino o treino sem precisar do papel ou do excel. Sendo certo que a experiência também ajuda, não é a mesma coisa! A maratona tem outro tipo de envolvimento que, como sugeri em cima, afecta a nossa vida a todos os níveis. Com ela, ressurge a sensação de se viver algo com princípio, meio e fim. Chegado aqui, dou por mim a perguntar: não é com este tipo de desafios (ajustados aos nossos interesses e capacidades do momento) que se preenche uma vida com significado? Quando espreito a estante das minhas memórias, são coisas deste género que lá encontro: projectos que tiveram o tempo suficiente para nascer, viver e, aquando da sua morte, desaguar nesse cemitério que é a “memória”, precisamente porque não podem ser esquecidos.
Naturalmente que o dia da prova é mágico. Contudo, se em vez do longo caminho tivermos aterrado ali de pára-quedas, o orgulho em nós próprios e o “sabor” da aventura pode perder-se quase por completo. De facto, a não ser por motivos de exposição social, qual o propósito de correr mais de 42 quilómetros sem o mínimo de preparação? As únicas garantias dessa viagem directa para a linha de partida são, algumas horas depois, muitas dores físicas, que se prolongam por vários dias (na ausência de uma boa preparação, mais lenta e difícil a recuperação) e, muito provavelmente, pequenas lesões irrecuperáveis. A ser algo “sem caminho”, talvez faça mais sentido um desafio mais curto. O que até me faz lembrar quem decide tirar uma selfie equipada para fazer o exercício, mas que depois não vai fazer o exercício. Neste último caso, pelo menos não se rebenta com o corpo e com a saúde. Sobre isto, já me indignei em 2018. Um desabafo que vale tanto como qualquer outra opinião, mas que me deixou mais aliviado. Adiante!
No que à minha pessoa diz respeito, faz-me confusão como às vezes estrago um ciclo de hábito tão bom com o simples gesto de ir espreitar os “likes” numa publicação. Uma coisa a que dou valor no momento, mas que depois se esfuma. É uma gratificação instantânea, ao contrário da que a maratona ou outros projectos de vida (a médio, longo prazo, ou vitalícios) proporcionam. Claro que ter um “like” é muito agradável e, aliás, volta e meia pode mudar o curso de um dia. Pode ser o catalisador para nos deixar mais alegres e, como consequência, nos motivar a fazer uma tarefa para a qual julgávamos não ter energia, à semelhança do efeito provocado por um simples café.
Porém, e tal como o café, não deve esta ser uma rotina sem o dedo do vício? Ninguém sobrevive à base de cafés ou fica bem de saúde a navegar nos picos da adrenalina que estes provocam. Portanto, pode alguém ter uma vida com significado, apenas à base dos estímulos provocados por uma rede social ou aplicações semelhantes? É aqui que encontro a grande diferença. Ou seja, podemos acumular milhões de “likes” durante uma vida, podemos comprar milhares de coisas durante esse tempo – como nos impele esta sociedade de consumo – e, no entanto, todos esses comportamentos não passam disso: de estímulos. Logo, nunca poderão ser algo mais elaborado, com princípio, meio e fim. É impressionante como consigo olhar para um livro com tanto interesse quando o recebo, e, no dia a seguir, ao receber outro, parece que o anterior já não tem a mesma importância, e ainda nem lhe virei uma página. Este sentimento parece-me mais assíduo por estes dias. Resultado? Cada momento da vida parece estar desligado do que o sucede e do que o antecede. Fico com a impressão que aqui nasce um conceito diferente de “memória curta”, onde as vivências do passado parecem escombros de uma outra vida.
De volta à maratona, e ao momento em que cortamos a meta, as lágrimas que se libertam não se começaram a formar na linha de partida, mas sim centenas ou milhares de quilómetros antes, quando arrancou essa caminhada. E se as lágrimas são visíveis com frequência, a verdade é que nem todos as derramam. Todavia, julgo que todos os maratonistas têm algo em comum naquele momento: a leveza que os invade ao atravessar a linha, quando todos os sacríficios, toda a pressão, toda a ansiedade acumulada durante meses se liberta dos seus ombros. Porque ali terminou algo que tivemos tempo de sentir na pele e no coração em toda a sua dimensão. Instantes depois, a medalha colocada ao pescoço não passa de um gesto simbólico que representa a colocação das vivências do projecto na nossa estante de memórias, para lá ficarem emolduradas para a eternidade.
A terminar, ao leitor que nunca correu uma maratona mas que teve a paciência para chegar até este ponto do texto, deixo o aviso: não se deixe enganar pelo que escrevi antes. Depois daquela linha de meta, nem sempre são só sorrisos. Há sempre a gratificação da travessia. Isso está assegurado pela maratona e, estou convicto, quem se propõe ao objectivo “mais básico” de correr a distância sem olhar a marcas, regra geral, consegue-o. Contudo, quando falhamos os nossos objectivos para lá disso, a dimensão do projecto também torna a tristeza maior (sobre isto falo à vontade, pois já estive dos dois lados da barricada). Aliás, como acontece quando nos zangamos a sério com um amigo, perdemos um parente, ou falhamos outro objectivo na nossa vida que nos exigiu muito tempo e dedicação. Nestes casos, a dor, à semelhança da gratificação, também não é instantânea. Portanto, quando não corre bem, há que fazer o devido “luto” e reflectir sobre isso, sendo que desta vez, temos a vantagem de analisar e transformar esse desgosto em algo de positivo, de poder fazer diferente no futuro, o que noutras situações, infelizmente, não é possível.
Visto que a pandemia está mais controlada (ou assim parece), é tempo de assumir um projecto destes. Julgo que o fim do isolamento também foi decretado para as memórias diárias, pelo que chegou a altura de as interligar e dar-lhes um sentido, a fim de que um dia resultem em gratificações duradouras. Bons projectos 🙂
Nota: O autor escreve de acordo com o antigo Acordo Ortográfico.
Créditos Foto: Marco Verch no Flickr
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