Com 2024 na sua recta final, já não há volta a dar: a loucura e…
A tendência de imitar os corredores profissionais
A chegada da internet tornou possível o contacto com pessoas de qualquer canto do nosso planeta. Por sua vez, as redes sociais deram-nos acesso às vidas pessoais e privadas dos nossos ídolos e heróis que, como grande parte dos cidadãos comuns, ali as expõem de forma gratuita. Porque diga-se o que se disser, uns mais do que outros, todos gostam de partilhar momentos.
Os praticantes de atletismo não fogem à regra! Deste lado, estamos sempre atentos a novas publicações dos profissionais. Mesmo em momentos de maior distração, alguém fará esse trabalho por nós através de uma simples partilha.
Ora, se algumas publicações despertam simples curiosidade e divertimento, outras fazem click na nossa cabeça. Embora o sucesso do atletismo seja o resultado de um trabalho diário inteligente, e nós tenhamos noção disso, tentamos muitas vezes ignorar a realidade. Preferimos acreditar que nos falta uma peça do puzzle que vai fazer disparar o nosso rendimento da noite para o dia. Em jeito de alucinação, visualizamos muitas vezes essa peça que falta nas últimas novidades sobre a vida de um profissional, ou no mais recente artigo que lemos sobre atletismo. O mesmo será dizer que estamos cheios de vontade de aplicar à risca as novas descobertas.
Do meu ponto de vista, esta imitação cega aos métodos de trabalho dos profissionais de atletismo é perfeitamente legítima. Eu próprio ainda tenho alguma tendência (mais no passado!) a seguir ao milímetro as suas rotinas e metodologias. Se eles são os melhores dos melhores, se têm um rendimento excepcional, porque não o fazer?
A resposta reside no entusiasmo pela descoberta feita. Um entusiasmo, um tanto ou quanto semelhante ao dos primeiros metros de uma prova, que nos impede de ser mais racionais e de perceber que talvez algumas das coisas que acabamos de ver ou ler não encaixem no nosso perfil, aptidão física, cultura, região, ou, mais importante de tudo, na nossa vida diária. Por outras palavras, pode ser prejudicial para nós. Vamos ver alguns que identifiquei.
O excesso de quilómetros de treino … e de intensidade!
Seguir à risca o plano de treinos de um atleta de topo mundial, porque sim, eles circulam por aí, pode ser bastante arriscado. Essencialmente por dois motivos que se relacionam entre si.
O primeiro diz respeito ao número de quilómetros. Quer o plano em causa esteja em tempo de treino ou em quilómetros de treino, não nos podemos esquecer que os atletas de elite precisam de muito menos tempo para atingir o seu total de quilómetros semanal do que os restantes atletas. Isto significa que em termos de corrida o nosso corpo é submetido a um maior desgaste que o deles se percorrermos a mesma distância. Quanto mais lentos, maior esta diferença.
O segundo é relativo à intensidade do treino. Olhemos para um treino de repetições de 10 x 1K. Um atleta de topo demora menos do que nós a cumprir a distância, o que significa que o tempo de intensidade despendido no treino é inferior ao nosso. Em números razoáveis de repetições não será problemático manter tudo igual. Porém, quando entramos na casa das 20 repetições, e em distâncias consideráveis, a diferença já é alguma. Se optarmos por ignorar este ajuste, quanto mais não seja devemos ter em conta o esforço extra despendido quando estipularmos o tempo necessário de recuperação até ao próximo treino intenso.
O organismo e a cultura gastronómica
Colocando totalmente de lado a publicidade a suplementos, outra das modas atuais é a divulgação do plano alimentar dos profissionais para as principais refeições. Faz sentido imitar? É necessário fazê-lo? Antes disso, talvez seja melhor ter em conta o seguinte.
Nós não vivemos todos na mesma parte do planeta. Não estamos todos sujeitos às mesmas condições climatéricas que, com o passar dos anos, vão moldando e cimentando adaptações no nosso organismo e na sua forma de trabalhar. Por outras palavras, as necessidades do atleta X podem não ser as mesmas do atleta Y, e o mais certo é alguns alimentos serem melhor recebidos no organismo do atleta X que no do atleta Y.
Embora o domínio africano no atletismo de fundo seja inegável, continuam a existir atletas excepcionais oriundos de países de outros continentes. Por muito poucos que sejam por esta altura, eles existem! Ora, por influência das culturas gastronómicas dos seus países, de certeza absoluta que as bases dos seus regimes alimentares são diferentes das dos africanos, mas igualmente ricas em bens essenciais. Temos o nosso próprio caso. Ainda num passado recente, Portugal teve atletas fora de série e, com certeza, os seus regimes eram diferentes da competição internacional.
Conclusão? Uma alimentação equilibrada poderá ser encontrada nas culturas gastronómicas dos quatro cantos do mundo. Obviamente que cada uma terá as suas peculiaridades e pequenas vantagens e desvantagens em relação às restantes. Todavia, incapazes de condicionar um excelente rendimento desportivo.
A postura do corpo durante a corrida
Este é um tema que ainda hoje gera muito debate. Não é para menos. Se olharmos para uma prova de 10000 metros na pista constatamos que nem todos os atletas correm da mesma maneira. Que têm todos um grande conjunto de movimentos em comum? Certamente. Porém, para lá da componente mais técnica, a sua postura diverge, também resultado das suas caraterísticas físicas.
O que vou dizer a seguir já grande parte de vocês deve ter experienciado. Num treino, vem alguém a correr na nossa direção, a uma distância de 600 metros ou mais. Apesar de ainda estar longe, conseguimos identificar de quem se trata. Isto só é possível porque todos nós temos posturas e maneiras de correr que aliadas à nossa fisionomia corporal nos tornam únicos.
Por outras palavras, se alguns movimentos nossos devem ser corrigidos em prol de um rendimento superior e de um melhor acondicionamento do nosso corpo, sob risco de não termos problemas de saúde mais à frente, existem outros que não devem ser mudados, exatamente pelas mesmas razões. Também neste tema, as regras de boas-práticas devem ser linhas de orientação. Nada mais do que isso.
Vejamos. Se os manuais ditam 180 como o número ideal de passos por minuto para um corredor de fundo, e o campeão de uma prova importante tem precisamente esse número médio, este dado deve ser levado ao pormenor? Sabendo nós que alguns atletas têm 2 metros de altura e outros 150 centímetros? Certamente que não, pois o comprimento da passada também será diferente.
Em suma, um atleta que siga à risca estas linhas, mesmo que o corpo lhe esteja a dizer que aquilo não é o melhor para ele, poderá sair muito prejudicado em termos de rendimento e, quiçá, a nível de saúde a longo prazo. Não é sensato descurar a opinião da nossa máquina.
Os treinos bidiários
Eu já fiz bastantes. Por esta altura? É raro! No futuro? Talvez faça mais quando voltar a preparar uma maratona. Simplesmente aprendi a meter na equação todos os outros fatores da minha vida. Algo que a princípio não considerava. Por essa altura, os bidiários tinham que existir, apenas porque sim.
A verdade é que assimilamos com facilidade a ideia que se os profissionais fazem bidiários, então nós também temos de fazer. Acontece que não nos podemos esquecer das diferenças das nossas vidas. Um atleta profissional vive para o treino e para o descanso, as duas componentes principais do seu trabalho. Já um atleta que não seja profissional tem de juntar o desgaste do treino ao do trabalho (que pode ser muito ou pouco exigente em termos físicos e/ou mentais), mais a dificuldade em ter o tempo necessário para o descanso recomendado. Os bidiários podem ser uma possibilidade e solução em algumas alturas. Não obrigatoriamente ao longo de toda a época.
Existe ainda a questão da exigência dos treinos bidiários comparativamente aos diários. O nível de exigência é subjetiva. Depende das escolhas. Já o tempo de intervalo entre treinos é mais reduzido quando escolhemos os duplos.
Um exemplo curioso para esta situação é o de Yuki Kawauchi. O japonês tornou-se atleta profissional este ano, mas já antes tinha registos de grande nível. Para lá dos tempos, a vitória na maratona de Boston do ano passado foi algo de extraordinário, olhando à concorrência. Atualmente, não sei que metodologia segue o nipónico. Contudo, antes de se tornar profissional, segundo o site Sweat Elite, a típica semana de treino de Yuki Kawauchi não incluía bidiários. No entanto, a maioria dos seus treinos rondavam os 20 quilómetros.
Conclusão? Analisar, testar e ajustar
Sem mais nada a dizer, deixo-vos com estas partilhas e reflexões que por esta altura fazem sentido na minha cabeça. Continuo a testar e a imitar filosofias e métodos de treino que me despertam a atenção, a curiosidade, e a motivação para treinar. Todavia, cada vez mais aplico os ajustes que considero propícios à minha vida, às minhas capacidades atléticas, e às caraterísticas biomecânicas do meu corpo. Tudo isto em paralelo com a forma de trabalhar do meu organismo.
Créditos Foto de Capa: “Zurich Marathon 2015”by Zürich Marathon is licensed under CC BY-ND 2.0
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